Clipping Jornais - Banco Central (2022-05-29)

(Antfer) #1

CACÁ DIEGUES - DE VOLTA AO FUTURO


Banco Central do Brasil

Jornal O Globo/Nacional - Segundo Caderno
Sunday, May 29, 2022
Cenário Político-Econômico - Colunistas

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Autor: CACÁ DIEGUES


Como fazer um filme, uma peça de teatro ou ficção
literária precisa de algum dinheiro, quando a cultura é
perseguida e não pode se expressar livre e
independentemente o que melhor revela o que está se
passando é a canção popular. Ao longo dos anos, em
diferentes casos e países, é ela que tem nos contado o
que acontece de verdade.


A ditadura militar no Brasil começava a perder seu
poder quando ouvi, no primeiro Rock in Rio, a canção
'Pro dia nascer feliz', uma espécie de fundo musical
para a eleição de Tan-credo Neves. Algum tempo
depois, no derradeiro show de Cazuza, no velho
Canecão, a grande novidade pop da música brasileira
era o fracasso do Brasil como projeto de nação. Um
fiapo de magro, com ênfase e horror, Cazuza inventava
gestos agressivos ao cantar o país propondo, até com
certa indecência, o que era preciso fazer com ele e seus
mitos. No século XX, a música popular nunca faltou ao
encontro do país em seus momentos mais significativos.


Para mim, começava ali a conclusiva decepção com o


velho sonho de ver o Brasil ensinando o resto do mundo
a viver. Como ser feliz apesar de tudo. Porque, apesar
de tudo, acreditávamos num certo jeito de levar a vida
que incluía uma ideia de solidariedade que não
dependia de regime político ou coisa parecida. Era a
nossa própria alegria de viver, nossa certeza de poder
compartilhá-la com qualquer tipo de gente. O que
ilustraria nossa confiança num futuro que iria se impor
pelaprópria necessidade do ser humano. Nada disso
acabou acontecendo.

No cinema, queríamos pouco. Apenas construir um
novo cinema que realizasse nosso singelo programa de
apenas três pontos: mudar a história da atividade,
tirando-a das mãos da indústria que nos sufocava;
mudar a história do país, trazendo seu povo para o
primeiro plano narrativo dos filmes; e mudar a história
do mundo, que só estava esperando que uma gente
cordial e otimista, como pensáva-mos ser, se
manifestasse. E tudo isso era perfeitamen-te viável, se
quem o realizasse fosse mesmo capaz de acreditar e
agir dentro dessa crença, sem medo de ser feliz.

Como nasci em 1940, sob a ditadura do Estado Novo,
só já maduro descobri que, na primeira eleição depois
de sua queda, o Brasil havia eleito, como presidente da
democratização, o ministro da Guerra do ditador que
flertara com Adolf Hitler. Na eleição seguinte, foi o
próprio ex-ditador, responsável por um regime de crimes
hediondos, que voltou ao poder por votação popular. A
cultura política entre nós sempre eximiu o eleitor de
qualquer responsabilidade.

Agora, estamos diante de uma eleição igualmente
decisiva, como são todas elas. Acho que, se pensarmos
um pouco, veremos que o Brasil ainda pode contribuir
para o progresso da Humanidade. Pode ser uma ilusão,
mas prefiro achar que sim. Não vai adiantar nosso velho
patriarcalismo nos fazer procurar um poderoso que seja
o culpado de tudo o que nos contraria. Evitaríamos
assim o desamor do povo, a quem juramos amar.

Pois bem, que se danem as alienações clássicas. Não
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