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Jornal Folha de S. Paulo/Nacional - Ciência
Sunday, May 29, 2022
Cenário Político-Econômico - Colunistas
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Autor: Reinaldo José Lopes
Se eu ganhasse um centavo toda vez que ouvi alguém
dizendo que a violência de Bolsonaro "é só falação",
"não é pra levar a sério", "é da boca pra fora", teria
ficado mais rico que o Elon Musk, mesmo com a
inflação atual. Esse tipo de conversa parte do
pressuposto de que não há relação real entre o que um
líder político diz e as atitudes de seus seguidores. O
próprio presidente parece acreditar nisso - logo após ser
esfaqueado em 2018, declarou, aos prantos: "Nunca fiz
mal a ninguém".
Há boas razões empíricas para acreditar que a
premissa por trás desse raciocínio está errada. Retórica
política violenta produz violência. A brilhante ideia de
jogar um homem com problemas mentais numa câmara
de gás improvisada, que estarreceu quem ainda tem um
pingo de humanidade neste país, não partiu de Brasília,
obviamente. Mas, ao que parece, líderes políticos como
Bolsonaro ajudam a criar ambientes em que esse tipo
de coisa acontece com mais frequência.
Os mecanismos psicológicos por trás disso são bem
conhecidos. Não há genocídio moderno que não tenha
sido precedido de uma campanha de desumanização e
demonização do "Outro", do inimigo, do estrangeiro.
Cartuns e filmes nazistas comparando judeus a ratos
são o exemplo mais famoso.
A prática, porém, é muito mais comum do que se
imagina. Os massacres dos anos 1990 que devastaram
Ruanda, na África Oriental, só se tornaram possíveis
porque programas de rádio incentivavam membros da
etnia hutu a "matar as baratas" - os que pertenciam à
etnia rival dos tutsis. Esse tipo de prática pega carona
num reflexo cognitivo muito mais antigo da nossa
espécie, responsável pela tendência universal de dividir
o mundo entre "nós" e "eles" usando elementos como
aparência física, língua e comportamento.
Tão importante quanto fixar uma imagem desumanizada
do inimigo na cabeça do grupo de seguidores está a
dessensibilização deles. Ou seja, martelar
constantemente as mensagens violentas,
transformando-as numa espécie de ruído de fundo do
discurso político, faz com que esse tipo de pensamento
pareça cada vez mais natural e aceitável. Um estudo de
2017 liderado por Wiktor Soral, da Universidade de
Varsóvia, mostrou como isso pode acontecer na prática.
Em entrevistas e experimentos realizados com centenas
de poloneses, Soral e seus colegas verificaram que
pessoas expostas a discursos que incitavam o ódio a
imigrantes tendiam a desenvolver mais preconceito
contra estrangeiros e a apoiar medidas severas anti-
imigração.
E quanto a ações diretas? James Piazza, da
Universidade do Estado da Pensilvânia (EUA), mapeou
o uso de discursos de ódio por líderes políticos e a
ocorrência de episódios de terrorismo doméstico (ou
seja, praticado por habitantes do mesmo país) em mais
de 130 países, entre o ano 2000 e 2017. Os resultados,
publicados em março de 2020, indicam que esses atos
de terror são quase dez vezes mais comuns em países
nos quais os políticos usam esse tipo de discurso
rotineiramente (uma média de mais de 107 incidentes