Superinteressante - Edição 399 (2019-02)

(Antfer) #1
mais aves, mamíferos e insetos atás
de comida. Eles deixavam as presas
fake alguns dias na natreza selvagem
e depois verifcavam se elas haviam si-
do mordidas. Conclusão? “Uma lagarta
próxima aos polos tem oito vezes menos
chance de ser mordida que uma lagarta
no Equador”, me contou na época Larissa
Boesing, da USP. “Para cada grau a mais
de lattde, a probabilidade de a lagarta
sobreviver intacta aumenta em 2,2%.”
Essa é uma maneira de adquirir co-
nhecimento. Verifcar uma hipótese na
unha. A outa é consultar alguém que
já verificou a hipótese. Quando uma
criança faz isso, ela busca uma fonte
confiável – a mãe, por exemplo. Um
cientsta, quando lê a descrição de um
experimento realizado por outo cients-
ta, avalia cada passo para saber se pode
confar nas conclusões.
Um cientsta usa o conhecimento ad-
quirido por outos cientstas como ponto
de partda de seu tabalho. Caso contá-
rio, a ciência seria um empreendimento
coletvo estagnado. “Vou estdar uma
lua de Júpiter. Vou começar testando pe-
la enésima vez essa hipótese chamada
gravidade.” Quando um certo número
de crianças testam a mesma hipótese
(de que areia teria gosto de Nescau) e
chegam à mesma conclusão (de que não
tem), forma-se uma teoria. Os cientstas
chamam de teoria uma hipótese verif-
cada várias vezes.
A palavra “teoria”, então, tem um sig-
nifcado diferente para a ciência: é uma
explicação para algum aspecto da natre-
za que já foi testada e assinada embaixo.
Não tem o signifcado de “suposição” ou
“especulação” que os não cientstas cos-
tmam lhe atibuir. A teoria da tectônica
de placas de Wegener e Wilson, a teoria da
evolução por seleção natral de Darwin e
a teoria da relatvidade geral de Einstein
são aceitas como fatos.
Dogmas, por outo lado, são infor-
mações sobre a natreza que não foram
confrmadas experimentalmente. A úni-
ca maneira de justfcar a crença em um
dogma é o argumento de autoridade: um
livro sagrado carrega a palavra de Deus,
e ela é indiscutível. Por isso mesmo, o
único conhecimento que pode constar
do currículo escolar é o científco. Todos
têm direito à fé em algum dogma; todos

têm direito a ter seu dogma respeitado
e o dever de respeitar o dogma alheio.
Mas é essencial que o professor deixe
o dogma na porta quando pega o giz.
Nenhum professor deve afirmar que
areia tem gosto de achocolatado, pois
qualquer criança pode verifcar que é
mentra. Tampouco ele pode dizer que
Jesus caminhou sobre as águas, que Deus
ditou o Corão a Maomé ou que pular
sete ondas para Iemanjá garante sorte.
Nenhuma dessas hipóteses provou-se
verdadeira. São todas questão de fé –
algo profndo e estitamente pessoal.
E isso nos leva a outo problema da
religião na escola pública: cada grupo
tem a sua religião (principalmente em
um país com tanta diversidade cultral
como o nosso). Um cristão pode achar
engraçado um índio Kaiapó acreditar
que uma onça inventou a carne assada.
O índio acha engraçado que o cristão
acredite em uma mulher virgem que dá
à luz. Um professor não tem tempo de
abordar cada uma das várias fés que exis-
tem no Brasil. Não em pé de igualdade.
E, se ele privilegiar uma, obviamente
será em detimento de outa. Alguém
sempre acaba desrespeitado. A solução
é ater-se à ciência – que vale para todos.

Analfabetsmo científco
Outo motvo para que o ensino público
atenha-se à ciência é o maior défcit do
País: o de conhecimento. Nossos est-
dantes ignoram fatos científcos bási-
cos. 40% dos jovens ente 15 e 16 anos
declaram não saber se o ser humano
foi vítma de dinossauros carnívoros
(a resposta é não). 44% não sabem que
o planeta Terra tem 4,5 bilhões de anos
de idade. Um terço acha falsa a afrma-
ção de que o homem descende de outa
espécie de primata. Os dados são de um
estdo de 2015 com 2.404 alunos da
rede pública de todo o Brasil.

Uma sociedade de analfabetos científ-
cos é incapaz de combater, por exemplo,
problemas de saúde pública. A versão
resistente a antbiótcos do bacilo de
Koch, que é consequência da evolu-
ção por seleção natral, mata 250 mil
pessoas por ano, segundo a OMS. Essa
tberculose anabolizada não distngue
crentes e ateus. Sem a tectônica de pla-
cas de Wegener e Wilson, por sua vez, é
impossível estdar terremotos, vulcões
e tsunâmis – como o que matou 429
pessoas na Indonésia em dezembro. O
bom das teorias é que elas valem até para
quem não acredita nelas. Assim, permi-
tem entender o mundo e torná-lo melhor.
Perceba que alfabetzação científca
não tem a ver com ser ou não ateu. 8%
das teses e dissertações do departamen-
to de biologia da USP contêm agrade-
cimentos a Deus na dedicatória. Na
veterinária, sobe para 38%. O biólogo
Antonio Carlos Marques, que levantou
esses dados, me confessou: “Eu enten-
do a necessidade pessoal de explicações
metafísicas, mas como é que o próprio
aluno não sente o confito dento de si
quando religião e ciência se encontam?”
De fato, é um confito. Mas não há por
que cobrar ateísmo de todo cientsta.
Cabe ao profssional entender-se com
a própria consciência, contanto que ele
separe aquilo que é fé daquilo que é fato.
E isso vale para todos os brasilei-
ros. Este texto não advoga conta a fé
nem pede que ninguém a deixe de lado.
Só é preciso concordar que a religião,
seja ela qual for, não pode interferir
em polítcas públicas de educação, de
ciência ou de tecnologia. A separação
ente Igreja e Estado, afnal, é como a
teoria da evolução: sempre dá certo
quando é testada. Deixá-la para tás a
essa altra seria um retocesso – um
recuo tão grande quanto se voltásse-
mos todos a comer areia. S

Um terço dos brasileiros entre


15 e 16 anos acha falsa a afrma-


ção de que o homem descende


de outra espécie de primata.


Edição alexandre versignassi

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