20 de novembro, 2019 51
Na retaguarda do atraso
o embate entre radicais faz o país refém de uma política obsoleta
sendo o governo José Sarney a encarna-
ção do mal na óptica vigente, ganhou
aquele que soube representar o seu con-
trário (Fernando Collor). Fez isso nos
termos rancorosos muito parecidos
com os utilizados hoje.
Com o surgimento do PSDB, acirra-
ram-se as animosidades entre tucanos
e petistas, que já se estranhavam desde
a cisão da esquerda decorrente do fim
da frente de combate à ditadura. Insta-
lou-se, então, o ambiente de beligerân-
cia que dominaria a política por mais
de vinte anos como se nada mais exis-
tisse a não ser PT e PSDB. E nem exis-
tia mesmo, pois as demais
forças atuavam como sa-
télites desses dois parti-
dos. Criticar um signifi-
cava automaticamente
adesão ao outro. Tudo
branco ou preto, sem di-
reito a meio-tom.
E eis que estamos de
volta ao que a velha musa
entoava. No mesmo lugar no qual é de
se perguntar se e quando o Brasil vai
se dar ao direito de não dançar confor-
me a música do embate bipolar que nos
impõe o modo dízima periódica, numa
repetição sem fim.
Escapar dessa armadilha não é fácil,
mas é possível. A eleição de 2018 mos-
trou que há um enorme contingente a
ser trabalhado entre os que votaram no
candidato que lhes pareceu o menos
deletério e os que não fizeram escolha
alguma, ausentando-se, isentando-se
(opção em branco) ou protestando me-
diante o voto nulo.
O mundo político há que se virar
para apresentar boas alternativas, mas
o eleitorado há que se mexer muito
mais ainda para adaptar seus critérios
de avaliação a fim de não se deixar
capturar pelos ilusionismos de todos
já bastante conhecidos. ƒ
Espirituoso e observador dos bons,
ministro da Justiça escolhido por Tan-
credo Neves e incorporado ao governo
do vice e sucessor, Fernando Lyra sape-
cou nos idos dos 1980 uma frase que fi-
caria na história: “Sarney é a vanguarda
do atraso”. Fez o chiste a propósito de
definir o presidente como o melhor que
se poderia ter naquele momento de pe-
sar, apesar de todos os pesares.
Lá se vão mais de trinta anos, e
aquele que foi também um traçado crí-
tico da política brasileira recém-liberta
da ditadura só não pode ser aplicado à
atualidade porque não existem (ain-
da?) no cenário lideran-
ças capazes de represen-
tar algo parecido com es-
perança de mudança para
melhor. Salvo alguns bre-
ves ensaios logo interdi-
tados pelo êxito eleitoral
do populismo, nessas três
décadas retrocedemos a
um quadro mais apro-
priado ao que poderíamos chamar de
retaguarda do atraso.
A despeito da modernização em di-
versos setores, na política seguimos
vivendo sob a égide da obsolescência.
Seja nas regras que norteiam o sistema
eleitoral, seja no funcionamento dos
partidos, na vocação da maioria para
pautar escolhas de governantes por es-
peranças tão apaixonadas quanto equi-
vocadas, na dinâmica da dicotomia des-
provida de nuances atualmente chama-
da de polarização, que vem de longe e
continua a privilegiar a exclusão como
norma na tomada de decisões.
Voltemos de novo no tempo, desta
vez para demonstrar. Na primeira elei-
ção direta pós-regime militar havia
uma variedade enorme de candidaturas
presidenciais (eram 22 os concorren-
tes), algumas bastante qualificadas,
mas prevaleceu o critério da rejeição:
É difícil, não
impossível,
romper as
amarras da luta
entre dois polos
permitem a prisão em segunda
instância. Nos Estados Unidos e
no Reino Unido, os réus chegam a
ser presos até antes do julgamen-
to, após se declararem culpados.
Na Alemanha, França e Itália, o
cumprimento da pena ocorre em
segundo grau, com um detalhe: na
primeira instância, não é um juiz
sozinho que decide, mas um cole-
giado. Os especialistas destacam
que até existem países nos quais a
pena só começa depois do “trânsi-
to em julgado”, mas não há ne-
nhum no mundo que tenha quatro
instâncias como o Brasil.
A cúpula do Congresso está di-
vidida quanto ao tema da segunda
instância. O presidente da Câma-
ra, Rodrigo Maia, vem dando si-
nais simpáticos à ideia e até suge-
riu ao deputado Manente alguns
caminhos para contornar obstá-
culos para a aprovação da sua
PEC. O par de Maia no Senado,
Davi Alcolumbre, é mais resisten-
te à medida. Na terça 12, ironizou
o barulho que os colegas estavam
fazendo em cima da matéria, pro-
pondo uma “solução” radical. “A
gente podia fazer uma nova Cons-
tituinte, e todo mundo renuncia
ao seu mandato e faz logo uma
nova Constituinte, se essa é a
prioridade”, disse. Há uma mani-
festação prevista para ocorrer na
Avenida Paulista no próximo dia
17, com o objetivo de fazer o cal-
deirão das ruas atingir o ponto de
fervura ideal para permitir a vira-
da do jogo. Os entraves são enor-
mes, mas o Brasil precisa de uma
vez por todas resolver a questão
de qual regra vale para combater
e punir o crime. Colocar na cadeia
depois de um julgamento rápido e
justo os poderosos que andaram
fora da linha foi uma das melho-
res ideias que surgiram por aqui
nos últimos anos. Seria bom con-
tinuar seguindo esse caminho. ƒ
Dora KraMEr
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