Dossiê Superinteressante - Edição 398-A (2019-01)

(Antfer) #1
Lisboa era negra – provocou questona-
mentos sobre as prátcas escravagistas,
cruéis e distantes dos valores cristãos.
Séculos antes, os árabes tnham lidado
com o mesmo tpo de reprovação, um
dilema superado com a elaboração de
uma pseudoideologia de cunho religioso
sobre a suposta inferioridade dos negros.
Na Europa, coube aos papas da época
a absurda tarefa de “tentar justfcar a
escravidão dos africanos. Em uma das
bulas sobre o assunto, Nicolau 5o deu ao
rei de Portgal permissão para invadir,
buscar, captrar e subjugar os pagãos da
África. Na visão dos pontífces, a escra-
vização era justa perante Deus, porque
preservava a vida dos escravos em um
contexto de confitos violentos. A au-
torização, na verdade, tnha o propósito
de fortalecer o cristanismo diante do
avanço muçulmano.
Em paralelo aos textos papais, cor-
riam ainda teses fundamentadas em
interpretações desvairadas de passa-
gens bíblicas que tratam de uma su-
posta “maldição divina” dos africanos,
ora apontados como descendentes de
Caim, o assassino do próprio irmão, ora
derivados de Cam, o flho amaldiçoado
de Noé, que serviam a uma extensa gama
de teorias racistas.
Mas a história da escravidão ganha
seu capítulo mais dramático com a
chegada dos europeus à América, em
1492, quando tem início o tansporte
maciço de africanos para o outo lado
do Atlântco. A necessidade de mão de
obra barata nas plantações aqueceu o
comércio nos novos territórios. Com os
altos preços, reinos da África adotaram
o fornecimento de humanos como prin-
cipal atvidade econômica. Em toca, os
chefes locais recebiam produtos varia-
dos, como tecidos, aguardente e tabaco.
Outo bem valioso eram as armas, in-
dispensáveis nas guerras tavadas com
objetvo de escravizar conterrâneos. Os
confitos abalaram as estutras sociais
do contnente, que passou a conviver
com a brutalidade desenfreada.

Brasil, maior porto
de desembarque
A história oficial da escravidão nas
Américas começa em 1502, quando
uma frota de 30 navios liderada pelo

parte dos escravos tnha como destno
as colônias britânicas. Na autobiogra-
fa, o ex-escravo conta que, ao chegar a
Barbados, foi comprado por um ofcial
inglês e virou marinheiro. Foi nesse pe-
ríodo que recebeu o apelido jocoso de
Gustavus Vassa, nome de um rei sueco.
Equiano ainda foi vendido mais duas
vezes antes de comprar sua liberdade,
em 1766, aos 21 anos. Livre, tabalhou
como barbeiro em Londres, mas logo
voltou ao mar como marujo contatado.
Sua vida, porém, não se tornou menos
dura, por causa dos preconceitos ainda
hoje enfrentados por negros.
Quando a autobiografa de Equiano foi
lançada, em 1789, a causa abolicionista
estava em alta. Protestantes ofereciam
argumentos religiosos, enquanto inte-
lectais do Iluminismo apresentavam
razões humanistas. Havia também uma
ideia de que as tansformações causadas
pela Revolução Industial tornavam a es-
cravidão um obstáculo para a formação
de mercados consumidores. Enquanto
o debate nos círculos brancos avançava,
negros nas colônias lutavam pela liberda-
de. Uma das revoltas foi o Quilombo dos
Palmares, reduto de escravos fgitvos no
interior de Alagoas e Pernambuco, que
resistu por quase um século até ser arra-
sado por topas ofciais, em 1694. Outo
caso foi a Revolta dos Malês, um levante
de negros muçulmanos, oriundos espe-
cialmente do Sudão via Benim, que mo-
vimentou as ruas de Salvador em 1835.
Em comparação com os demais escravos
que chegaram aqui, os malês eram mais
instuídos, muitas vezes alfabetzados em
árabe, e carregavam um espírito rebelde.
É considerada a mais importante revolta
urbana de negros pela liberdade no Bra-
sil. Mas o maior tiunfo pela liberdade foi
a Revolução Haitana, iniciada em 1791
e que só terminou em 1804, com o fm
da escravidão e a independência do Hait
do domínio francês.
A derrocada do táfco negreiro come-
çou em 1807, quando a Inglaterra aboliu
o táfco pelo Atlântco, medida seguida
por França, Holanda e Espanha e depois
pelos países latnos. O Brasil foi o últmo
país das Américas a abolir a escravidão,
em 13 de maio de 1888, com a assinatra
da Lei Áurea, quando a pressão interna-
cional já era insustentável.

espanhol Nicolas de Ovando chegou à
Hispaniola, ilha que hoje abriga Hait e
República Dominicana, com 2.500 colo-
nos dispostos a viver nas novas terras.
Designado governador, Ovando organi-
zou a indústia de cana-de-açúcar local
e, diante do fracasso em contar com mão
de obra indígena, solicitou aos reis da
Espanha o início do táfco. Não há do-
cumentos precisos sobre a chegada dos
primeiros escravizados ao Brasil, mas
os desembarques ofciais tveram início
na década de 1530, também destnados
à indústia da cana, que começava a
despontar em algumas capitanias. Em
1583, o Brasil contava 14 mil escravos,
um número que subiria constantemente
até o auge do táfco no País, ente 1800
e 1850, período em que 2,3 milhões de
negros aportaram aqui.

O Brasil foi o país que mais recebeu
escravos nas Américas. Quato em cada
dez negros que cruzaram o Atlântco até
a segunda metade do século 19 tveram
como destno nosso país – um total de
4,8 milhões de africanos. As áreas forne-
cedoras mudaram ao longo dos tempos,
mas a maior parte dos negros desem-
barcados por aqui eram de Angola e do
Congo, seguidos dos escravizados em
Moçambique e na região do Golfo de
Benim, ente Gana e Nigéria. O contole
do táfco, que nos primeiros tempos era
portguês, também tocou de mãos e
foi exercido por holandeses, franceses
e depois britânicos. Na metade do sé-
culo 18, época em que Olaudah Equia-
no conheceu o navio negreiro, a maior

Fontes Historia del tráfco de seres humanos de 1440 a 1870, Hugh Thomas; Los comienzos de la esclavitud en América, Conrado Habler / Antonio María Fabié; O Navio Negreiro,
Marcus Rediker; A Escravidão no Brasil, Jaime Pinsky; Escravos e Trafcantes no Império Português, Arlindo Manuel Caldeira.

DesenhanDo um Continente 23

20-25_Cap1_AfricaEscravidao.indd 23 06/12/18 18:08


0
0
Free download pdf