Público • Sexta-feira, 1 de Novembro de 2019 • 37
— analisou linfócitos B de 26 crianças
que nunca tinham sido vacinadas.
Essas crianças pertenciam a uma
comunidade protestante ortodoxa
da Holanda e foram infectadas devi-
do a um surto de sarampo no país
em 2013. O estudo às células imuni-
tárias foi feito antes de essas crianças
terem Æcado infectadas e 40 e 50
dias depois. A partir da amostra, fez-
se o primeiro mapa genómico da
resposta do sistema imunitário ao
sarampo, o que permitiu aos cientis-
tas desvendar dois mecanismos usa-
dos pelo vírus.
Através de um deles, o sarampo
elimina a “memória imunitária” de
agentes patogénicos que já tinham
detectados pelo sistema imunitário
antes de uma infecção. Em circuns-
tâncias normais, sempre que o siste-
ma imunitário vê um novo agente
patogénico guarda esse registo como
se as células tivessem, de facto, uma
“memória imunitária”. Quando há
uma infecção, as células lembram-se
desse agente patogénico, estando
assim preparadas para lhes dar uma
resposta e evitar uma doença. Agora,
a equipa de Velislava Petrova viu que
as crianças que não foram vacinadas
e tiveram sarampo perderam partes
dos registos guardados pelo sistema
imunitário.
“Mostramos que o sarampo causa
directamente a perda de protecção
a outras doenças infecciosas”, salien-
ta a cientista do estudo publicado na
Science Immunology. “Outras equipas
já tinham colocado essa hipótese,
mas aqui mostramo-lo pela primeira
vez e directamente.”
Descobriu-se ainda um outro
mecanismo em que o sarampo con-
segue que o sistema imunitário volte
ao mesmo estado imaturo de quan-
do somos bebés. Tal como outros
sistemas do nosso corpo, o imu-
nitário não está totalmente des-
envolvido quando nascemos e
os recém-nascidos têm uma
capacidade limitada para res-
ponder a infecções. “À medida
que vão crescendo, os indiví-
duos conseguem responder
melhor a diferentes infecções”,
explica Velislava Petrova. “Os
programas de vacinação têm
em conta o melhor momento
para se receberem as diferentes
vacinas.” O Programa Nacional de
Vacinação português prevê a pri-
meira dose da vacina para o sarampo
aos 12 meses e a segunda dose aos
cinco anos.
A revacinação
Agora, este estudo mostra que o sis-
tema imunitário das crianças volta
ao estado imaturo de quando eram
bebés e que algumas tinham capaci-
dade limitada para responder a
novas infecções. “As implicações
deste mecanismo são substanciais,
porque signiÆca que alguns indiví-
duos com sarampo poderão não só
Æcar sem memória imunitária como
também Æcar com uma capacidade
limitada para construir uma nova
imunidade”, indica a cientista.
Por Æm, testou-se a amnésia imu-
nitária directamente em furões infec-
tados com sarampo e que tinham
sido vacinados contra a gripe. Obser-
vou-se que o sarampo reduzia o nível
de anticorpos da gripe e que os ani-
mais infectados com o vírus tinham
sintomas mais graves.
Já um outro trabalho publicado na
Science que teve como primeiro
tora de longo prazo e que os indiví-
duos tinham desenvolvido ao longo
da sua vida antes de serem infecta-
dos pelo sarampo”, nota Stephen
Elledge. “A ameaça que o sarampo
representa para as pessoas é muito
maior do que imaginávamos.”
Para a equipa, a limitação do estu-
do é que apenas analisaram a res-
posta da memória imunitária entre
dois e três meses depois da infec-
ção. Por isso, analisou-se o que
acontecia a quatro macacos Rhesus
antes de terem sarampo e cinco
meses depois de terem Æcado infec-
tados. Resultado: em média, entre
40% e 60% dos anticorpos existen-
tes antes da infecção eram perdidos.
Contudo, a equipa pretende inves-
tigar a resposta imunitária num
período mais alargado.
Para os autores de ambos os estu-
dos, demonstra-se a importância da
vacinação para evitar não só o saram-
po como também outras infecções.
“O vírus do sarampo cria uma janela
de oportunidade para outras doen-
ças quando o indivíduo perde a pro-
tecção aos agentes patogénicos”,
considera Velislava Petrova. “Por
esta lógica, ao nível populacional, os
surtos de sarampo podem reduzir a
imunidade de grupo a outros pato-
génicos, assim como levar ao ressur-
gimento de outras doenças infeccio-
sas. Esta é uma mensagem-chave
para a área da saúde pública.”
No caso do sarampo, para que a
imunidade de grupo seja mantida, é
necessário que 95% da população de
um país esteja vacinada. “Os pais têm
de ter a consciência de que as suas
escolhas sobre a vacinação podem
ter consequências na saúde de outras
pessoas”, alerta a investigadora.
“Temos de continuar vigilantes em
relação à erradicação do sarampo e
continuar a evitar a epidemia, assim
como evitar a amnésia imunitária”,
aÆrma por sua vez Michael Mina num
vídeo de apresentação do seu estu-
do. “A vacinação é a melhor forma
de evitar o sarampo.”
Já Stephen Elledge adianta mes-
mo uma possível implicação des-
te estudo: “Os efeitos observa-
dos indicam que uma das formas
de se mitigar os problemas de
longo prazo associados ao
sarampo poderá ser a revacina-
ção de crianças com outras vaci-
nas [como a da varicela] já
depois de recuperarem do
sarampo.” Uma grande ajuda
para isso funcionar são os pro-
gramas de saúde pública com
revacinação de crianças. “Hoje,
muitas pessoas que nunca viram
o que é o sarampo pensam que só
causa uma irritação na pele e febre”,
considera. “Mas, na verdade, o
sarampo dizima grandes fracções da
memória imunitária protectora e
isso põe as crianças em risco relati-
vamente a outras doenças.”
Sobre as futuras investigações
cientíÆcas, Velislava Petrova conta
que gostaria de caracterizar a forma
como o sarampo afecta a nossa
medula óssea ou de estudar a longe-
vidade da supressão imunitária e
como a probabilidade de se sofrerem
outras infecções depende do país
onde se vive. “Seria importante fazer
este estudo em países onde as infec-
ções são mais comuns — por exem-
plo, em diferentes países da África
Subsariana —, porque as pessoas têm
um acesso mais limitado às vacinas
e também vivem em áreas com uma
maior frequência de doenças infec-
ciosas.” Para a cientista, este estudo
poderia fornecer fortes argumentos
para o investimento da vacinação
nos países em desenvolvimento.
CENTRO PARA O CONTROLO E PREVENÇÃO DE DOENÇAS DOS EUA
“Muitas pessoas que
nunca viram o que é
o sarampo pensam
que só causa uma
irritação na pele
e febre. Mas, na
verdade, põe as
crianças em risco
relativamente a
outras doenças”,
diz Stephen Elledge [email protected]
autor Michael Mina — da Faculdade
de Medicina de Harvard, nos Estados
Unidos — quantiÆcou os danos cau-
sados pelo sarampo no sistema imu-
nitário. Através de uma ferramenta
para detectar todos os anticorpos
dirigidos contra vírus e bactérias no
nosso sangue chamada VirScan, ana-
lisaram-se amostras de sangue de 77
crianças que não foram vacinadas.
Essas crianças pertenciam à mesma
comunidade holandesa do estudo
anterior e tinham tido sarampo dois
a três meses antes do estudo. Com-
pararam-se esses resultados com
crianças e adultos nunca tinham tido
sarampo.
Concluiu-se então que o vírus do
sarampo elimina entre 11% e 73% de
diferentes anticorpos que nos prote-
gem contra estirpes virais e bacteria-
nas. Esses anticorpos eram os que se
m
recordavam de encontros passados
com vírus e bactérias e evitavam ou
minimizavam infecções. Mesmo
assim, os autores avisam que algu-
mas crianças não deverão perder
mais de 50% dessa memória imuni-
tária preexistente.
“O vírus parece acabar com a
memória imunitária contra diferen-
tes doenças com a mesma probabili-
dade”, diz Stephen Elledge, também
da Faculdade de Medicina de Har-
vard e autor do artigo. Percebeu-se
ainda que depois do sarampo se vol-
ta a adquirir a imunidade perdida de
forma gradual, mas que isso pode
durar meses ou até mesmo anos.
“Este estudo é o primeiro a detec-
tar que o sarampo apaga uma grande
parte da memória imunitária protec-
Nos últimos anos,
o vírus do
sarampo (ao lado)
tem-se tornado
um problema
devido à acção
dos grupos
antivacinas
ALLISON M. MAIUR/CDC