38 • Público • Sexta-feira, 1 de Novembro de 2019
Quando, em 2011, a dupla artística
Ana Borralho e João Galante se ins-
pirou na mítica série espanhola
Verão Azul (que acompanhou qual-
quer infância vivida na década de
80) para baptizar o seu festival, par-
tiu de um duplo sentimento de per-
da. Por um lado, o vazio que tinha
signiÆcado o Æm, em 2002, do Festi-
val X, promovido pelo colectivo tea-
tral O Olho; por outro, a experiência
pessoal de Ana Borralho enquanto
algarvia, e o que implicara crescer
numa região onde o acesso a uma
programação regular de artes per-
formativas era uma miragem. Daí
que a vontade de preencher esse
vazio deixado pela morte do Festival
X tenha deixado a aboborar em Bor-
ralho e Galante um desejo cada vez
mais claro de criar um outro momen-
to de encontro entre criadores, a
partir de uma perspectiva de expe-
rimentação.
E quando, Ænalmente, decidiram
avançar, não precisaram de muito
tempo para descartar o nascimento
de um outro festival em Lisboa,
quando a própria história de vida
lhes mostrava o quanto poderiam
fazer a diferença numa paisagem
muito mais necessitada de uma pro-
gramação focada na criação con-
temporânea. E foi assim que sedia-
ram em Lagos a sua estrutura, a
casaBranca, e daqui partiram para
montar a primeira edição do Verão
Azul. E foi assim que, conta João
Galante ao PÚBLICO numa altura
em que decorre, até amanhã, a nona
edição do festival, vingou esse gesto
que visava plantar “mais um espaço
de resistência fora do centro”.
Sem saberem muito bem que
público iriam encontrar num progra-
ma que propunha espectáculos de
Tiago Rodrigues, Cláudia Dias ou
John Romão, Ana e João perceberam
logo na primeira edição que, apesar
de o nicho a que apontavam ser con-
Hoje e amanhã faz-se a despedida da
nona edição do Festival Verão Azul.
Durante três semanas, a criação
contemporânea andou por um Algarve
apostado em contrariar a cultura sazonal
sideravelmente reduzido na região,
“houve um grupo de pessoas que
apareceu logo, nos acolheu muito
bem” e se Ædelizou. Ano após ano, o
festival foi-se implantando e crescen-
do — e contornou, na terceira edição,
a falta de verbas com todo um pro-
grama transmitido em streaming,
como Marcelo Evelin a partir de um
quarto de hotel em São Paulo ou
Faustin Linyekula ao vivo desde Bru-
xelas — e, em 2014, esboçou um pri-
meiro momento de expansão ao
alastrar a Portimão. “Fomos ao
encontro das pessoas que sentiam
que tínhamos alguma importância e
que fazia sentido estarem connosco,
a partilhar ideias”, justiÆca Galante.
Periodicidade bienal
Chegado à nona edição, o Verão Azul
junta ao Centro Cultural de Lagos
(que se associou desde a primeira
hora) as fundamentais parcerias com
o Cine-Teatro Louletano (Loulé) e o
Teatro das Figuras (Faro), assim
como com o programa Algarve 365,
e assume, pela primeira vez, uma
periodicidade bienal. A dispersão
pelo território procura, naturalmen-
te, aproximar-se de salas e cidades
integradas numa dinâmica cultural
mais sólida e continuada, mas con-
vida também os públicos a cruza-
rem-se mais e a deambularem entre
cidades. A reportagem do PÚBLICO
na segunda semana do Verão Azul
acompanha essa deslocação — quin-
ta-feira, André Uerba e Dewey Dell
apresentam-se no Teatro das Figu-
ras, e o projecto musical Time for T
termina a noite na colectividade
Gimnásio Clube de Faro; na sexta, a
acção muda-se para Loulé, com Cláu-
dia Gaiolas a colocar-se na pele de
Clarice Lispector no Parque Munici-
pal, Gustavo Ciríaco a ocupar o palco
do Cine-Teatro Louletano e Gabriel
Ferrandini, Maria Reis e André Cepe-
da a visitarem o Auditório do Solar
da Música Nova.
São 20 minutos de caminho entre
Faro e Loulé, cidades protagonistas
em dias alternados do Verão Azul,
região; temos edifícios à beira-mar
que cortam uma vista que devia estar
acessível...”
Do mainstream ao nicho
Embora haja ligações bastante direc-
tas à temática, como o espectáculo
Entre Cães e Lobos, de Gustavo Ciría-
co, uma visão poética da transforma-
ção das paisagens, ou até mesmo o
concerto Colombiana do espanhol
Niño de Elche, em torno dos movi-
mentos de tráÆco humano (e as trans-
formações operadas no mundo por
essa via), o Æltro temático permite
também olhar, sob uma luz diferente,
Burn Time, de André Uerba. Em cima
do palco do Teatro das Figuras, várias
bailarinas encostam isqueiros a cen-
tenas de Æos de algodão pendentes
de uma estrutura, num silencioso e
Festival Verão Azul
Gonçalo Frota
A história de um Verão Azul
que é cada vez menos uma ilha
CULTURA
com o objectivo também de “que-
brar as barreiras psicológicas da dis-
tância”, explica Catarina Saraiva,
curadora convidada por Borralho e
Galante para se lhes juntar no dese-
nho da programação do festival.
Porque embora estes Çuxos possam
parecer óbvios, a tentação de os
públicos se limitarem ao seu espaço
habitual pode, por vezes, sobrepor-
se a qualquer outra lógica. É também
Catarina Saraiva a responsável pela
adopção de uma temática que pro-
põe um Æo condutor em parte da
programação do Verão Azul — no
caso, o Antropoceno. “Era uma
temática que me interessava muito
especiÆcamente porque o Algarve é
uma região extremamente modiÆca-
da pela acção humana — há 35 cam-
pos de golfe, mas falta água na