Público - 01.11.2019

(Ron) #1
ípsilon | Sexta-feira 1 Novembro 2019 | 3

ver todos os seus filmes na cidade entre 14 e
19 de Outubro.
A mostra abriu com Ama-Sam a inaugurar
o festival. Trata-se da sua mais recente
estreia, no entanto anterior à outra longa
documental que realizou. O filme foi feito no
Japão e documenta uma actividade milenar
que não resistirá por muito mais tempo: a
pesca em alto mar por mergulhadoras em
apneia, originalmente valorizada pela
recolha de pérolas, a que apenas se dedicam
mulheres, actualmente de meia idade ou
idade avançada com uma única excepção no
grupo que o filme acompanha. Cláudia
Varejão partiu inicialmente sozinha para o
Japão investigando uma história que a
intrigou na leitura de um livro de poemas, e
regressou um ano depois para filmar apenas
com Takeshi Sugimoto e Aya Koretzky,
director de som e tradutora luso-japoneses,
durante três curtas semanas. É quase em
paralelo um mergulho arriscado, agora
numa cultura diferente com que, no entanto,
os portugueses mantiveram longa
convivência, documentada no nosso cinema
em A Ilha dos Amores de Paulo Rocha e Os
Olhos da Ásia de João Mário Grilo.
Curiosamente Cláudia Varejão passa ao
lado de uma narração off explicativa ou do
registo de depoimentos. Muitas vezes a
câmara mostra cenas domésticas em que as
famílias das ama-sam olham televisores de
que só ouvimos o som, deixando fora do
enquadramento as imagens saturadas dos
media que hoje vemos sem verdadeiramente
ver. O filme pelo contrário é uma forma de
ver, com a rosselliniana preocupação com a
colocação da câmara. E numa cena muito
curiosa iremos ver crianças e adultos
procurando pirilampos e olhando-os numa
luminosa revelação nas suas mãos.
A realizadora abre o filme com um fascínio
bem português pelo mar, demoradamente
observado, enquanto uma das personagens
fala de sofrimento numa carta lida que quase
toca Pessoa no mar salgado, quanto do seu
sal são lágrimas de ama-sam.
E assim chegamos à sua segunda longa em
que No Escuro do Cinema Descalço os Sapatos.
Desta vez são 40 anos da Companhia
Nacional de Bailado, filme-encomenda mas
sem programa definido. E Cláudia Varejão
uma vez mais contorna a narração off e a
entrevista, e filma, como as mergulhadoras
japonesas, os corpos em trabalho, em
esforço, em sofrimento (inteligentemente o
excerto de A Perna Esquerda de Tchaikovsky
de Barbora Hruskova, bailarina no fim da
carreira, é um monólogo teatral e não um
testemunho espontâneo). E filma a preto e
branco, repetindo a opção de Dúvida (2012)
sobre a criação da banda sonora da peça por

Bernardo Sassetti e o maestro Vasco Pearce
de Azevedo da Sinfonietta de Lisboa – em No
Escuro do Cinema... a dada altura fixando-se
no afinamento de um piano, em Dúvida
repetindo planos da pauta e do violino de
que há que com esforço extrair a música.
Parece que para Cláudia Varejão não há um
único plano trivial, tudo se quer significativo
numa densidade que é verdadeiramente a da
arte. Cada filme torna-se também um
exercício – noutros casos filma vozes com
imagens que lhe são alheias como em
Tempus Fugit (2012) e especialmente em
Semear o Tempo (2015), onde neurocientistas
e artistas se reúnem sob a égide do CCB e da
Fundação Champalimaud e se interrogam
sobre as suas identidades, paradoxalmente
num anonimato sem rosto, numa escala que
diríamos cósmica.
E finalmente Cláudia Varejão e a ficção. Na
verdade, foi o início – três curtas metragens,
Fim de Semana (2007), Um Dia Frio (2009) e
Luz da Manhã (2011) que apresenta como
uma trilogia não planeada. Na conversa com
a realizadora, Nelson Araújo sublinha a
presença da água nos três filmes, talvez
prenunciando Ama-Sam, a que Cláudia
Varejão responde com desarmante
simplicidade “fui nadadora”. Cláudia Varejão
parece idealizar num meio aquático, talvez
amniótico, os vasos comunicantes da cena
familiar, o despertar da adolescência e da
sexualidade e a autonomia já vacilante da
velhice, os dedos que perscrutam no corpo a
transformação ou a doença. Cada plano
parece grávido de um seguinte numa
intimidade em desequilíbrio contido a que a
rigor podemos chamar vida. Ou narrativa.
Hannah Arendt em Homens em
Tempos Sombrios descreveu
Walter Benjamin como um
pescador de pérolas,
justapondo citações,
“fragmentos de
pensamento”.
Talvez essa “mais
louca técnica
mosaica
imaginável” possa
inspirar o porvir de
Cláudia Varejão
naquilo que, nesta
mesma semana de
Outubro, e também no
Porto no Festival Queer,
definiu como estética da
curiosidade, na “carta
branca” que a
Agência da
Curta
Metragem
lhe propôs.

scadora de pérolas


Em Feelin’ Kinda Patton, o primeiro álbum de stand-up
de Patton Oswalt, o cómico referia-se a Robert Evans,
o produtor que morreu esta segunda-feira, como
“Cokey McSnortfuck from Beverly Hills” para falar da
bizarria que foi, no início dos anos 2000, terem posto
Evans a fazer anúncios para o canal desportivo NFL
Network. Penso sempre nesse nome, que se refere à
quantidade colossal de cocaína que Evans terá
consumido ao longo da vida, quando me lembro dele,
e foi justamente essa faixa que fui ouvir a propósito de
ter descoberto que o produtor de Chinatown tinha
morrido.

Tal aconteceu a caminho da Cinemateca, onde
Outubro, tirando uma semana, foi mês de Ida Lupino,
tanto dos filmes dela enquanto actriz como do
trabalho dela enquanto realizadora – já agora, é
demasiado pedir uma retrospectiva de Dorothy
Arzner, outra pioneira? Ficou-me, sobretudo, a
magistral cena da dança em cadeiras de rodas de
Never Fear, as bolas de sabão a saírem do chá das
freiras e as queixas das mulheres idosas sobre os
filhos não partilharem o Natal com elas em The
Trouble with Angels, o derradeiro filme dela, a única
comédia e o único a cores.

Já em casa, o mês foi de Hong Kong, com os primeiros
três Police Story de Jackie Chan, e Chow Yun-Fat,
ainda hoje a pessoa com mais pinta a alguma vez
aparecer em filmes, dirigido por Ringo Lam em City
on Fire e John Woo em A Better Tomorrow 2, mas a
imagem que mais retenho do mês é a de Ving
Rhames, com cabelo, a rezar, qual pregador, a pedir
para trazer de volta à vida um miúdo que teve uma
overdose em Por Um Fio de Scorsese. No dia antes, no
Nimas, tinha visto a cópia digital restaurada dos 25
anos de Pulp Fiction – com legendas em português do
Brasil e, como tradução do título, Tempos de
Violência. Nem reconheci Rhames, de tão diferente
que estava.

Também em sala, no Ideal, What She Said: The Art of
Pauline Kael, de Rob Graver, que passou como parte
do DocLisboa, pôs-me a olhar para Raising Kane, o
polémico ensaio da crítica sobre Citizen Kane que
salienta mais o contributo de Herman J. Mankiewicz
como argumentista do que Orson Welles como
realizador para o sucesso artístico do filme – David
Fincher está a preparar um filme sobre este
Mankiewicz, o que me põe curioso. No documentário
sobre Kael, surge uma citação de Francis Ford
Coppola a dizer que Pauline o tentou convencer a não
usar a Cavalgada das Valquírias de Wagner em
Apocalypse Now, já que Lina Wertmüller já a tinha
usado, e bem, em Pasqualino das Sete Beldades.
Desculpa perfeita para descobrir o filme, ainda
para mais na semana em que Wertmüller, a
primeira mulher a ser nomeada para um Óscar
de Melhor Realização, recebeu um Óscar
honorário – e andam para aí uns restauros dela,

O que me passa pela cabeça


ípsilon | Sexta-feira 1 Nove

rigor podemos chamar vida. Ou narrativa.
Hannah Arendt em Homens em
Tempos Sombrios descreveu
Walter Benjamin como um
pescador de pérolas,
justapondo citações,
“fragmentos de
pensamento”.
Talvezessa “mais
louca técnica
mosaica
imaginável” possa
inspirar o porvir de
Cláudia Varejão
naquilo que, nesta
mesma semana de
Outubro, e também no
Porto no Festival Queer,
definiu como estética da
curiosidade, na “carta
branca” que a
Agência da
Curta
Metragem
lhe propôs.

Fincher está a preparar um filme sobre este
Mankiewicz, o que mepõe curioso. No documentário
sobre Kael, surge uma citação de Francis Ford
Coppola a dizer que Pauline o tentou convencer a não
usar a Cavalgada das Valquírias de Wagner em
Apocalypse Noww, já queLina Wertmüller já a tinha
usado, e bem, em Pasqualino das Sete Beldades.
Desculpa perfeita para descobrir o filme, ainda
para mais na semana em que Wertmüller, a
primeira mulher a ser nomeada para um Óscar
de Melhor Realização, recebeu um Óscar
honorário – e andam para aí uns restauros dela,

Por
Rodrigo
Nogueira

OLIVER MORRIS/GETTY IMAGES

Alberto
Manguel
e os seus amigos
imaginários
40

O DA CAPA VÍTOR CARVALHO E-MAIL [email protected]


uma retrospectiva também não
calhava mal. Ficou a pequenez
masculina de Giancarlo
Giannini, a violência do campo
de concentração e, para irritar
Coppola, a Cavalgada.
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