Público - 01.11.2019

(Ron) #1
ípsilon | Sexta-feira 1 Novembro 2019 | 11

Vitalina Varela condensa toda a história das


mulheres que Äcam, sempre que os homens


partem por força da lei, da ambição, ou da


miséria. Estávamos carentes da sua voz, da


sua inteligência e da sua coragem. Por Ana


Cristina R. Pereira*


F


aço como devo fazer.
Começo por dizer que
Vitalina Varela é um filme
belíssimo e
maravilhosamente
construído, que nos revela,
plano a plano, mais uma
perspectiva da história que Pedro
Costa e os seus coautores,
imigrantes cabo-verdianos, nos
vêm contando, nos últimos vinte e
tantos anos. Desde que vimos
Cavalo Dinheiro (2014) sabemos o
que aconteceu a Vitalina Varela, de
Figueira das Naus – casou, em Cabo
Verde, com Joaquim de Brito Varela
que logo depois regressou a
Portugal, para trabalhar. Viu-o
apenas duas vezes, depois disso.
Um dia, muitos anos mais tarde, foi
surpreendida com a notícia da
morte do marido e correu à
embaixada para conseguir os
documentos exigidos e assistir ao
funeral. O processo não foi
suficientemente rápido, a viagem
não foi fácil e quando chegou a
Lisboa o enterro já tinha
acontecido. Vitalina Varela parte
daqui. É a vivência de um luto
marcado pela dor mas também
pela raiva provocada por tantos
anos de espera e pela frustração de
chegar tarde, mesmo para um
ajuste de contas.
Este filme parece permitir uma
aproximação mais fácil que os
anteriores Cavalo Dinheiro (2014) e
Juventude em Marcha (2006),
sobretudo por via da relação com o
tempo, que é mais linear. No
entanto, como em todas as obras
de Pedro Costa, cada um
encontrará a sua chave para entrar.
Esta chave, ou senha de acesso,
pode residir no próprio cinema, na
fotografia, ou na pintura, entre

outras referências, sem as quais
parece ser impossível falar ou
escrever sobre o trabalho deste
auteur. Desta vez, mais uma vez,
muito se escreverá sobre todos
estes temas. Sei que sim e é
totalmente justificado. O filme
soma prémios – Locarno,
La-Roche-Sur-Yon, Chicago – e
segue conquistando os corações
dos mais diferentes amantes de
arte pelo globo fora. Acontece que
também tenho a minha password
pessoal de acesso ao filme: Vitalina.
Continuo, portanto, arriscando-me
por outro caminho.
Escrevo estas palavras
profundamente emocionada. Como
mulher, afrodescendente, filha de
pai cabo-verdiano, estava há muito
tempo à espera de Vitalina Varela.
Enquanto investigadora na área do
cinema e concretamente nos
estudos de recepção sei que não a
esperava sozinha.
Assim que a mulher cujo nome dá
título ao filme aterrou na Portela,
sentiu, como tantas outras, que
afinal aqui não havia nada para ela.
A evidência de que não havia aqui
nada para ela foi explicitada, à
chegada, por toda a realidade ao
redor e sussurrada no abraço das
suas irmãs, funcionárias de limpeza
no aeroporto. No caso particular de
Vitalina Varela, porém, não era
exactamente verdade. Porque
estávamos carentes da sua voz, da
sua inteligência e da sua coragem.
Agradeço-lhe que tenha vindo. A
sua presença no ecrã dá visibilidade
a milhares de mulheres pobres
deste país miserável. Através de
Vitalina Varela, há uma história que
começa finalmente a ser contada.
Esta é a história de uma mulher
em trânsito da Ilha de Santiago, em

Cabo Verde, para a periferia de
Lisboa. Primeiro, presa nas teias
burocráticas que caracterizam as
relações entre os dois países e
depois debatendo-se com a
realidade da Lisboa negra. Está
quase tudo dito, Vitalina desloca-se
entre periferias (mais ou menos
rurais, mais ou menos urbanas) e
durante o percurso vê
desfazerem-se as promessas do
patriarcado cristão, por via da
máquina capitalista e da sua
urgência permanente de lucro,
mas também e sobretudo do
abandono dos seus pares.
Vitalina Varela condensa toda a
história das mulheres que ficam,
sempre que os homens partem, seja
por força da lei, da ambição, ou da
miséria. A história de Joaquim de
Brito Varela e dos companheiros
que o velam é a de Ventura ou a de
Tito. Lembram-se? Eles foram
jovens briguentos que dançavam,
bebiam e amavam nos encontros de
cabo-verdianos do Jardim da
Estrela, nos anos 1970. Além disso,
Ventura é o pioneiro de uma
diáspora e, juntamente com os seus
companheiros, o construtor de
novas cidades e de novas
possibilidades de vida. Os homens
enganados e explorados são, ainda
assim, o polo positivo desta
epopeia, ignorada é certo, mas que
se projecta na esperança de um
futuro menos sombrio. São bravos
guerreiros, heróis de uma elegia
trágica a ser lembrada e celebrada.
E as mulheres? Elas ficaram à
espera. Pelas mais variadas e
imperdoáveis razões, eles não
regressaram.
Vitalina Varela surpreendeu-me
e deu-me energia. Eu não a sabia
tão jovem, tão cheia de força.
Desde aquele esboço de sorriso,
numa das cenas finais de Cavalo
Dinheiro, construí mentalmente
Vitalina como uma daquelas
pessoas que transformam tudo
numa mais-valia, a porta voz de
uma revelação de que todas as
perdas se validam em grandes
aprendizagens. Vitalina Varela não
é nada disso. Não é uma
sacerdotisa, é uma mulher. Claro
que está zangada. Não veio para
nos consolar. Somos
companheiras. E ela

Vitalina Varela não é uma sacerdotisa, é uma
mulher. Claro que está zangada. Não veio para
nos consolar. Somos companheiras. E ela
empodera-nos. É uma mulher, foi uma rapariga,
e antes de tudo isso, uma menina

empodera-nos. É uma mulher, foi
uma rapariga, e antes de tudo isso,
uma menina. Foi traída por aqueles
que a deviam ter protegido. Num
mundo patriarcal trava-se de
razões, não apenas com um
homem em particular, mas com
todo o patriarcado, porque eles
nunca se dão ao trabalho de
imaginar o nosso sofrimento, nem
quando nos vêem no caixão. O
cinema, e no caso, o cinema
português é bem a prova disso.
E depois, uma vez de tempos a
tempos aparece uma pessoa, um
cineasta, como Pedro Costa.
Acompanho há anos o trabalho do
Costa, desde O Sangue que vi, em
1990 creio, num festival em Aveiro,
onde ganhou o prémio de melhor
filme. Ainda me lembro do Pedro
Costa nas escadas do teatro, todo
de preto, com meias vermelhas, a
queixar-se de que o filme estava a
receber mais atenção do que a que
ele desejava e que sentia que o
filme estava demasiado “protegido
pelo cinema” ... e nós todos a bater
palmas, já não ao filme, mas ao que
o autor dizia sobre o filme e sobre o
Cinema. Sentíamos que estava ali
um cineasta que iria fazer filmes
para nós. E assim tem sido.
Depois de O Sangue (1989) foi
para Cabo Verde filmar Casa de
Lava (1994), a história de uma
enfermeira portuguesa que
acompanha a casa um trabalhador
cabo-verdiano em estado
comatoso. Foi lá que tudo começou
— o filme contra um guião escrito e
eventualmente contra um certo
cinema, mas sobretudo esta
relação com um povo “de príncipes
e princesas”, recuperando palavras
do autor na altura. Ainda segundo
Costa, quando voltou a Lisboa
trouxe tabaco, café e cartas para
familiares dos amigos que tinha
feito em Cabo Verde e que viviam
nas Fontainhas. Não sabemos se
quando foi às Fontainhas levar as
encomendas compreendeu
imediatamente que estava ali a sua
fonte dramática ou se foi
percebendo com o tempo. Não
sabemos se teve uma epifania ou se
lhe foi acontecendo, se decidiu
ficar ou se foi ficando. Os
testemunhos do autor são
contraditórios, apesar da

extraordinária coerência que lhe
conhecemos e admiramos. É
evidente, contudo, o seu
movimento duplo e progressivo de
afastamento do mundo de
produção vigente e de
aproximação a esta comunidade
imigrante, que leva para dentro do
seu cinema. No processo aparece
primeiro Ossos (1997), depois O
Quarto de Vanda (2000), mais tarde
Juventude em Marcha (2006),
conjunto a que se convencionou
chamar Trilogia das Fontainhas.
Pelo meio, o autor fez outras coisas,
com outros amigos. Os mais
emblemáticos são: Où gît votre
sourire enfoui? (2002), sobre os
cineastas Danièle Huille, Jean-Marie
Straub, e Ne change rien (2009),
sobre o processo criativo da actriz e
música francesa Jeanne Balibar e o
guitarrista Jacques Offenbach. Só
depois Cavalo Dinheiro, construído
sobre a memória de Ventura e onde
aparece pela primeira vez Vitalina.
Vitalina Varela desce mais uns
degraus, no programa
cinematográfico de Costa, de
inscrever a história dos apagados
da história na história do cinema,
de Portugal e do mundo. À medida
que se vai recompondo, Vitalina
questiona a finitude do amor, acusa
o defunto marido e as estruturas
sociais que o defendem, ao mesmo
tempo que trabalha — partilha
comida, arranja a casa, protege o
telhado, cava terra. Nunca
tínhamos visto ninguém a trabalhar
tanto num filme de Costa. Mesmo
Vanda Duarte não trabalhava tanto.
Vanda era jovem, portuguesa e
branca, tinha muitos privilégios.
Estou convencida de que Costa
também estava há muito à espera
de Vitalina e de que ela chegou
quando ele estava pronto para a
escutar. Estejamos, também nós, à
altura desta voz. Que ela seja mais
poderosa e audível que toda a
pintura, fotografia e cinema, ou
melhor, que a arte esteja ao seu
serviço e que desse modo, pelo
menos desta vez, a voz das
subalternizadas se faça ouvir.

*Investigadora Estudos Culturais do
Centro de Estudos de Comunicação
da Sociedade da Universidade do
Minho
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