28 | ípsilon | Sexta-feira 1 Novembro 2019
Vai encher os coliseus do Porto
(amanhã, dia 2) e de Lisboa (dia
9), porque os bilhetes
esgotaram escassos dias
depois de serem postos à
venda, em Fevereiro
Nery. E fiz uma coisa engraçada:
na minha discografia, há discos com
cada um desses homens. E a minha
forma de cantar nesses discos, para
quem ouvir com atenção, é diferente
de disco para disco. Porque eles é que
mandavam, davam indicações. Gostei
francamente da velha geração. Estou
de acordo que, como nos velhos cozi-
nheiros, havia a tentação de guardar
o segredo. Mas é preciso ver que o
fado vivia muito em gueto, era um
mundo próprio.
Isso alterou-se muito, não? Nos
dias de hoje a situação já é
outra...
A nova geração apanha um mundo
diferente, uma atitude perante a vida
diferente, uma colocação na vida
artística onde vem primeiro a fama
— uma coisa perigosíssima, porque
glória e fama são coisas vãs — e empre-
sários que só pensam em dinheiro.
São capazes de rebentar com a voz de
uma fadista qualquer. E isto parece-
me injusto. Curiosamente, os homens
não. Não usam saias, não põem coisas
bonitas na cara, não fazem penteados
especiais. Levei muitos anos a cantar
no estrangeiro e a ver pessoas sur-
preendidas porque achavam que o
fado era só cantado por mulheres,
por causa da Amália. E era até um
período em que havia mais homens
a cantar o fado. Não é fácil para eles,
mas mantêm uma linha de coerência.
Cantam muito bem o fado (Ricardo
Ribeiro, Camané, mais dois ou três),
cantam também canções de qualquer
estilo e cantam bem, mas depois vol-
tam ao fado, não misturam. E como
não misturam, os concertos deles são
feitos sem palminhas, com as pessoas
a ouvir. E não digo mais nada — apesar
de, no caso das mulheres, ter duas de
quem sou amigo. E chateia-me que
isso aconteça.
Acha que é uma fatalidade isso
suceder ou há forma de defesa
de quem canta?
Não conheço profundamente as pes-
soas para saber até que ponto isso é
possível. Temos os casos mais varia-
dos. Há quem queira a fama, muito,
a qualquer preço, dinheiro, e uma
vida de destaque social que muitas
vezes não condiz com o próprio per-
curso da vida de pessoa. Vamos lá a
ver: eu vivi no Bairro da Bica até me
casar. Tive desgosto de a casa de onde
saímos não ter espaço para eu e a
Judite vivermos com os filhos. E vim
viver há 50 anos para as Avenidas
Novas, onde não conheço grande
parte dos vizinhos. São mundos dife-
rentes e isso tem muita importância
no comportamento.
Em 2003, numa entrevista a
Viriato Teles (que aliás saiu em
livro), por ocasião de ter sido
distinguido com o Prémio José
Afonso, disse que aprendeu a
envelhecer sem drama. Como é
que isso se faz, em concreto?
Eu estive à morte quando tinha 50
anos. Estive à morte quando tinha
60 anos. Estive à morte quando tinha
63 anos. Estive à morte quando tinha
79 anos. Se isto não é aprender a
envelhecer, o que é aprender a enve-
lhecer? Eu necessito de afecto, olho
para as pessoas e gosto de sentir
afecto por elas, dá-me vida. Morrer?
Estou pronto para morrer a qualquer
momento. Seria injusto queixar-me.
Trataram-me tão bem... O meu pai
não tinha dinheiro para mandar can-
tar um cego e pôs-me a estudar num
colégio na Suíça, casei com uma
mulher que é uma pessoa do outro
mundo e depois os nossos filhos e
netos, há aqui um conteúdo de gran-
de liberdade com grande responsa-
bilidade, portanto quando nos
encontramos estamos bem. Discuti-
mos, ralhamos, cada um traz o seu
problema, é excelente. E acordo
sempre bem-disposto: porque estou
vivo.
“Eu estive à morte
quando tinha 50
anos. Estive à morte
quando tinha 60
anos. Estive à morte
quando tinha 63
anos. Estive à morte
quando tinha 79
anos. Se isto não
é aprender a
envelhecer, o que
é aprender a
envelhecer?”
e