14 • Público • Segunda-feira, 14 de Outubro de 2019
SOCIEDADE
Juiz Ivo Rosa tentou proteger
militares no caso de Tancos
O juiz de instrução criminal Ivo Rosa
tentou proteger a Polícia Judiciária
Militar das investigações da sua con-
génere civil ao reaparecimento do
material bélico furtado em Tancos. O
magistrado acabou por ser contraria-
do pelo Tribunal da Relação de Lis-
boa, que autorizou mais tarde que os
investigadores escrutinassem o tráfe-
go de telecomunicações que decorre-
ram na altura, em Outubro de 2017.
Mas os inspectores perderam cerca
de cinco meses até serem Ænalmente
autorizados a aceder a esta informa-
ção, considerada preciosa para o
apuramento dos factos. O mesmo
magistrado já tinha causado prejuízos
ao mesmo caso quando, na sequência
de uma denúncia a dar conta de que
alguém se preparava para roubar
armamento militar num quartel em
território nacional, inviabilizou escu-
tas que lhe foram pedidas para os
telemóveis de vários suspeitos. O fur-
to acabou mesmo por suceder apesar
deste alerta, dado por um cúmplice
dos ladrões, um homem alcunhado
de “Fechaduras”.
Foi a 24 de Outubro de 2017, menos
de uma semana após o reaparecimen-
to do material num terreno da Cha-
musca, que os inspectores da Judiciá-
ria civil decidiram pedir às operado-
ras de telecomunicações as listas de
tráfego — chamadas e mensagens
escritas — das antenas de telemóvel
do Montijo, Golegã, Entroncamento
e Torres Novas. AÆnal, tinha sido feita
de uma cabine telefónica do Montijo
a chamada supostamente anónima
para o piquete da Judiciária Militar, a
dar conta do paradeiro do armamen-
to. Parte das restantes antenas cobre
a estrada que dá acesso à zona onde
foi encontrado o armamento.
Mas o pedido tinha de ser validado
pelo juiz de instrução. Os inspectores
queriam ainda investigar as comuni-
cações efectuadas através dos dois
números do piquete na madrugada
dos acontecimentos, a 18 de Outubro
de 2017, bem como prolongar vigi-
lância ao telemóvel de um militar de
Loulé amigo do principal suspeito do
roubo, o guarda da GNR Bruno Ataí-
Magistrado não queria autorizar análise aos dados de tráfego de telecomunicações pedida pela Polícia
Judiciária e pelo Ministério Público. Objecções do juiz atrasaram investigação ao caso por vários meses
de. Em causa estavam apenas dados
de tráfego, e não o conteúdo das con-
versas. Tratava-se de informações
“essenciais para o prosseguimento
das investigações, nomeadamente à
descoberta dos factos e responsabi-
lização dos seus autores”, escreve-
ram os procuradores do Departa-
mento Central de Investigação e
Acção Penal quando encaminharam
este pedido para Ivo Rosa.
A resposta chegou logo um dia
depois, mas apenas era favorável no
caso do militar da GNR. O magistrado
entendeu que analisar os dados de
tráfego de todas as pessoas cujos tele-
móveis estiveram no raio de acção
das antenas em causa era ilegal. “As
antenas em causa abrangem uma
grande dispersão territorial, ou seja,
um universo indiscriminado de pes-
soas. Autorizar, mesmo que relativa-
mente a um período temporal curto,
a obtenção da listagem detalhada de
todas as chamadas que as utilizaram”
seria “violar a reserva da intimidade
da vida privada” garantida na Consti-
MIGUEL MANSO
Em Outubro de 2017 Ivo Rosa achava que a Polícia Judiciária não tinha razão para desconfiar dos militares
tuição, escreveu, uma vez que colo-
caria sob suspeita todos os cidadãos
nesse raio de acção. “Ainda que se
possa entender como essencial para
a investigação (...), a prova que por
esse meio pudesse vir a ser obtida
seria nula”, avisava ainda. Deixava
também claro não haver motivos para
a Judiciária civil andar desconÆada da
sua congénere militar: “Além do ale-
gado mal-estar entre PJ e PJM, dos
autos [do inquérito] não consta que
os telefones do piquete tenham sido
utilizados por algum suspeito relacio-
nado com os factos em questão.” O
futuro não lhe daria razão.
Inconformado, o Ministério Públi-
co recorreu para o Tribunal da Rela-
ção de Lisboa, que cinco meses
depois autorizou a quebra do sigilo
das comunicações, considerando
“absolutamente nuclear para a
investigação” descobrir quem tinha
feito o telefonema anónimo da cabi-
ne do Montijo.
Foi graças a esta autorização que
a PJ civil descobre que a chamada foi
realizada por um militar da PJM. Fri-
sando que os investigadores não
iriam aceder ao conteúdo das comu-
nicações, mas apenas à identiÆcação
e localização de telemóveis activos
no período sob investigação, as juí-
zas desembargadoras que assinaram
o acórdão explicam por que motivo
Ivo Rosa não tinha razão: “Não pode
servir de critério se são muitos ou
poucos os cidadãos afectados.” Se
se tivesse tratado de um atentado
terrorista, exempliÆcam, também
não proibiria as autoridades de
escrutinar as comunicações. “Impor-
ta ter em conta a gravidade dos fac-
tos (...), em particular a segurança
nacional, assim como o dano repu-
tacional para a instituição militar”
decorrente do roubo, sublinham.
Dois meses depois, Ivo Rosa havia
de ser novamente contrariado pelo
Tribunal da Relação de Lisboa. Recu-
sou-se a prolongar as escutas a alguns
suspeitos. Um acórdão de Maio de
2018 refere as consequências nefastas
dessa decisão: “Perdeu-se o controlo
de alguns dos números de telefone
utilizados pelos suspeitos que esta-
vam a ser interceptados.”
Justiça
Ana Henriques
[email protected]
Ladrões foram ao quartel três vezes
Acções de reconhecimento em Março de 2017
serviram de preparação para o furto
O
s ladrões do armamento
militar não se introduziram
em Tancos apenas uma
nem duas, mas sim três
vezes. Antes da madrugada de
27 para 28 de Junho de 2017,
João Paulino e alguns dos seus
comparsas já tinham entrado no
recinto militar para levarem a
cabo missões de
reconhecimento do local — que,
de resto, como reconheceram
durante os interrogatórios
judiciais vários militares que ali
prestavam serviço na altura,
tinha um sistema de vigilância
altamente deficiente.
Foi a 6 de Março desse ano
que as antenas de telemóvel
detectaram a presença do
ex-fuzileiro e de um cúmplice
seu no local. E há pelo menos
um arguido, o major Pinto da
Costa, da PJM, a garantir que
Paulo Lemos, mais conhecido
por “Fechaduras”, também lá
esteve. “João Paulino entrou
dentro de Tancos antes do
assalto e andou lá a vasculhar
aquilo tudo”, contou durante o
seu interrogatório outro
arguido, que tinha negócios de
droga com o ex-fuzileiro. Uma
segunda missão de
reconhecimento teve lugar dois
dias mais tarde, a 8 de Março,
concluíram os inspectores da
Judiciária. A.H.