Público - 14.10.2019

(Barry) #1
Público • Segunda-feira, 14 de Outubro de 2019 • 25

ECONOMIA


Opinião


Pedro Martins Barata


Há semanas, o Roteiro para a
Neutralidade Carbónica foi
publicado e transmutado na
Estratégia Nacional de Longo Prazo
de Portugal no âmbito do Acordo
de Paris, sendo Portugal o 13.º país
a nível internacional a apresentar a
sua Estratégia e apenas o 4.º país
europeu. A Estratégia, como o
Roteiro, tem recebido rasgados
elogios na frente internacional, seja
pelo processo seguido na sua
elaboração, seja pelo nível de
ambição, claramente em linha com
o que é pedido reiteradamente
pelo secretário-geral das Nações
Unidas. Estranhamente, as críticas
internas ao Roteiro/Estratégia
centraram-se até agora em dois ou
três pontos que reputaria
periféricos:
— A evolução da dieta alimentar e
o aumento da proteína vegetal. Esta
é uma crítica perfeitamente
“lateral” — o Roteiro não preconiza
uma dieta, antes assume que
assistiremos a uma mudança
comportamental no sentido da
redução do consumo de proteína
animal. Confundir um pressuposto
de modelação com um resultado da
mesma é idiótico, e só se entende
como estratégia para confundir o
público. O que é notório é que em
sociedades avançadas, sem incorrer
em extremismos vegan ou
vegetarianos, o consumo de
proteína animal tem vindo a baixar,
por variadíssimas razões, incluindo
razões de ordem de saúde pública,
ou de mudança de estilos de vida. O
Roteiro assume, não dita essa
evolução. Nem tão-pouco o Roteiro
preconiza o Æm da produção
pecuária em Portugal. Quem quer
ler isso quer tresler.
— A evolução da produção das
centrais elétricas a carvão e a
antecipação do seu fecho
(atualmente programado para
2029, no caso de Sines). Também
neste ponto, houve e há quem
considere demasiado ambicioso o
estipulado no Roteiro. Importa,
contudo, considerar que o fecho


das centrais a carvão foi imposto
pela agenda política e não resulta de
uma modelação do Roteiro (donde,
mais um tiro ao lado). Contudo, a
evolução dos preços do carvão,
associada à taxação sobre o carvão
em sede de ISP (uma isenção Æscal
incompreensível e uma correção de
um subsídio ambientalmente
perverso de décadas) e à subida em
termos relativos do preço de carvão
( vs. gás natural) no mercado
internacional ditou na prática que
nos últimos dois meses, em pleno
verão seco em Portugal, o recurso
ao carvão na produção elétrica
tenha diminuído 92% (!) face a igual
período do ano passado. Sobre isto
haverá quem venha contrapor que
essa produção tem sido
parcialmente colmatada com
importações de eletricidade
marroquina, com base no carvão.
Quem faça uma análise mais Æna
percebe que a capacidade de
interligação entre Espanha e
Marrocos nunca serviria para
colmatar mais do que 14% da
quebra de produção das redes
espanhola e portuguesa. Sendo
assim, também esse argumento não
procede na totalidade. Na verdade,
o que podemos estar a veriÆcar é o
Æm próximo do carvão, antecipado
pelo mercado largos anos em
relação ao estipulado politicamente
até ao momento.

— Uma terceira crítica muito
mediatizada foi a constatação no
Roteiro da forte atração do veículo
elétrico em Portugal. Ao mesmo
tempo, tem-se constatado, e o
ministro assim o fez, a evolução

abaixo dos 40%, quando em 2016
ela estava nos 65%.

Com tudo isto, torna-se difícil não
antecipar que mesmo a Estratégia
agora submetida pode vir a
desatualizar-se rapidamente. Não
por qualquer insuÆciência da
equipa que a produziu, ou por
algum conservadorismo latente,
mas porque a evolução disruptiva é
inerentemente difícil de antecipar.
O que agora se torna visível é,
contudo:
— A possibilidade/desejabilidade
de antecipar o fecho das centrais a
carvão: na prática, o mercado de
carbono e a taxação ambiental
corrigida ditará o seu fecho
progressivamente, mas seria
desejável a sua programação
atempada;
— A necessidade de continuar
ainda por alguns anos a subsidiação
do veículo elétrico, mas focando os
subsídios sobre os modelos mais
económicos, e naqueles
verdadeiramente elétricos. Não é

socialmente aceitável que veículos
híbridos de alta cilindrada recebam,
mesmo que de forma reduzida,
subsídios que deveriam ser
dirigidos para a conversão da classe
média portuguesa ao veículo
elétrico. Em paralelo, torna-se
gritante, face à evolução das vendas
de veículos elétricos, a criação, por
um lado, de uma rede de
carregamento ultrarrápido (como a
IONITY.eu) e a massiÆcação do
mercado de carregamento de
veículos elétricos, atualmente ainda
muito espartilhado pelas exigências
técnicas e regulamentares. Sob
pena de cada vez mais portugueses
se auto-organizarem em
experiências cidadãs, mas ilegais,
de redes de carregamento
informais;
— A necessidade de, através de
uma “lei do clima”, como proposto
por um conjunto de ONG e
plasmado em vários programas
eleitorais, criar um quadro
institucional de monitorização da
estratégia de longo prazo que
agora se submeteu, adoptando as
boas práticas seguidas por Reino
Unido, Suécia ou Nova Zelândia,
com as suas comissões
independentes de alterações
climáticas, com o propósito de
aconselhar e alertar os governos
futuros da República sobre as
oportunidades e os desaÆos da
transição energética.

Sinais de que a descarbonização


disruptiva é possível


MIGUEL MANSO

Coordenador do Roteiro para a
Neutralidade Carbónica 2050;
partner na empresa Get2c;
membro no conselho geral
da Zero

Em GWh, 2019

Produção elétrica em
Portugal continental por fonte

Fonte: APREN, acessível em CoolerWorld.pt

Bioenergia Solar Eólica
PCH Grande hídrica Carvão
Gás natural Cogeração fóssil

0

1000

2000

3000

4000

5000

Mar. Abr. Mai. Jun. Jul. Ago.

negativa das vendas dos carros a
gasóleo, sobretudo depois do
escândalo Dieselgate e das decisões
de diferentes geograÆas nacionais
europeias de limitar a circulação de
diesel nos centros das cidades. A
constatação de que o aumento da
poluição atmosférica nas cidades
tem relação direta com o engano
deliberado dos fabricantes
automóveis levou ao esgotamento
do capital de credibilidade destes
em relação à política de qualidade
do ar. Esta rejeição do diesel está a
ter impactes muito para lá do que o
próprio ministro estaria a antecipar.
Veja-se a evolução das vendas de
ligeiros de passageiros em Portugal
nos últimos dois anos (em períodos
homólogos):

O que se nota claramente — além
da explosão de vendas dos
eléctricos, pese embora a partir de
uma base muito pequena — é a
precipitosa quebra de vendas dos
veículos a diesel, com o share de
vendas em setembro a Æcar já

Evolução do share

Fonte: AutoInforma, acessíveis em CoolerWorld.pt

0%

10%

20%

30%

40%

50%

60%

70%

2016 2017 2018 2019

Gasolina

Diesel

Elétrico

Taxa de crescimento anual
de janeiro a setembro

Fonte: AutoInforma, acessíveis em CoolerWorld.pt

-50%

0%

50%

100%

150%

200%

2017 2018 2019

Gasolina Diesel Elétrico
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