30 • Público • Segunda-feira, 14 de Outubro de 2019
CIÊNCIA
Baleias
Estudo liderado por um economista do FMI revela que,
se as baleias pudessem voltar aos números anteriores aos da
baleação industrial, o planeta ganharia capacidade de Äxação
de CO2 equivalente à de quatro Åorestas como a Amazónia
A
entrada de uma
baleia-corcunda no
Tamisa, na semana
passada, chamou a
atenção do britâni-
co Philip Hoare,
autor de uma obra
magistral sobre
estes cetáceos que,
numa crónica no
jornal The Guardian , questionava se
aquele dócil animal estava ali para
ser salvo ou se vinha para nos salvar.
A pergunta, aparentemente tão
estranha, ganha todo o sentido se
atentarmos nos dados de um estudo
recente, publicado no mês passado
numa revista do Fundo Monetário
Internacional (FMI), dando conta de
que a recuperação da população de
baleias nos oceanos para os níveis
anteriores aos da época da grande
baleação industrial — e já lá vamos,
com um consequente aumento do
Ætoplâncton de que se alimentam
— ajudaria a capturar dióxido de
carbono numa quantidade equiva-
lente à capacidade de Æxação de
CO2 da Amazónia... a multiplicar
por quatro.
Não estragará a leitura a ninguém
relembrar o destino fatal do Capitão
Ahab na sua perseguição ao cacha-
lote albino que lhe rasgara a perna.
Quando Herman Melville escreveu
Moby Dick , a indústria do petróleo
dava os primeiros passos no mundo
— o primeiro furo na América acon-
teceu oito anos depois da publicação
do livro — e eram as baleias, ou o óleo
da sua gordura, que iluminavam a
civilização e lubriÆcavam as máqui-
nas da revolução industrial. Sem um
Ismael que lhes contasse a história,
milhões de cetáceos de várias espé-
cies alimentaram o crescimento da
economia mundial, num esforço de
futuro fácil, ainda por cima num
cenário de alterações climáticas com
impactos já conhecidos nos ecossis-
temas de que dependem.
Há uma dose enorme de ironia no
trabalho publicado na revista Finan-
ce and Development do FMI por um
quarteto de investigadores, entre eles
Ralph Chami, membro da direcção
do Instituto para a Capacitação e Des-
envolvimento do Fundo Monetário
Internacional. Segundo os autores,
estas criaturas, que provavelmente
foram salvas da extinção também
porque o petróleo se aÆrmou como
alternativa bem mais barata e eÆcien-
te ao longo da segunda metade do
século XIX e no século XX, podem
agora ter um papel relevante na tare-
fa hercúlea de nos salvar dos efeitos
das emissões de gases com efeito de
estufa, e nomeadamente do C02, a
grande “externalidade” atmosférica
de uma economia baseada... nos
combustíveis fósseis.
Talvez seja melhor que o novo
Governo do Brasil — que olha para a
Amazónia como uma fonte de rique-
zas a explorar e recusa o seu papel
como pulmão do planeta — nem sai-
ba disto. Mas pelas contas feitas pelos
autores destes estudos, se criásse-
mos condições para que as popula-
ções de grandes cetáceos regressas-
sem aos números da era anterior à
baleação internacional — o que signi-
Æca voltar a ter quatro a cinco
milhões destes mamíferos nos ocea-
nos, em vez dos 1,3 milhões que se
estima existirem actualmente —, o
mundo ganharia uma capacidade de
captura de C02 equivalente à de mais
de três Çorestas amazónicas.
“O potencial de captura de carbo-
no pelas baleias é verdadeiramente
surpreendente”, escrevem os auto-
res deste artigo, notando que estes
seres gigantes o acumulam nos seus
corpos ao longo de uma vida de
dezenas e dezenas de anos. “Quando
Abel Coentrão
caça que se industrializou e entrou
pelo século XX, altura em que a for-
ma como a humanidade, ou boa par-
te dela, passou a olhar para as baleias
de uma outra forma.
Em 2009, Philipe Hoare descrevia,
em Leviatã, em Busca dos Gigantes dos
Mares (edição portuguesa de 2015, da
Cavalo de Ferro), as mudanças na
nossa atitude perante estes seres,
desde os tempos em que, longe dos
nossos olhos, se assumiam como cria-
turas quase mitológicas, capazes de
engolir profetas, como Jonas, até aos
nossos dias, em que elas se tornaram
símbolo, na sua fragilidade, da urgên-
cia da conservação dos oceanos e da
Vida na Terra. Pelo meio, explica ao
longo de boa parte das 400 páginas
que lhes dedica como estes animais
foram fonte de riqueza, de poder, e
como isso levou algumas das suas
espécies à quase extinção e depaupe-
rou as populações de outras até
números que não lhes auguram um