34 • Público • Segunda-feira, 14 de Outubro de 2019
CULTURA
De Medeia, sabemos que matou os
Ælhos. É uma informação prévia que
os encenadores de Desmesura , o
mais recente trabalho da companhia
Escola da Noite, concedem que o
espectador tenha mesmo antes de
entrar na sala do Teatro da Cerca de
São Bernardo, em Coimbra.
A peça escrita por Eurípides, na
Grécia antiga, foi trabalhada por
Hélia Correia, que lhe oferece um
outro ângulo em Desmesura. Exercí-
cios com Medeia, o texto que serve de
base à encenação que a companhia
de Coimbra estreou na quinta-feira,
dia 10, e que Æca em palco até dia 27
deste mês.
A versão da escritora portuguesa
coloca a tragédia num espaço domés-
tico. Tudo o que vemos tem lugar na
cozinha, habitada pelas três escravas
acrescentadas à história por Hélia
Correia. Apesar de serem propostos
novos elementos, Desmesura conti-
nua a ser a história de Medeia, a
mulher que, movida pelo ciúme e
com desejo de vingança de Jasão, o
marido inÆel, passa à faca os Ælhos
que dele tinha. A existência das
escravas “faz com que a Medeia e o
Jasão sejam caracterizados através
delas”, explica a co-encenadora SoÆa
Lobo. A sua presença é muito impor-
tante, “pelas questões que coloca”,
acrescenta, nomeadamente as rela-
ções de poder.
A preocupação da peça da Escola
da Noite não é actualizar Eurípides,
tal como o texto de Hélia Correia não
tem tal pretensão, asseguram os três
co-encenadores em conversa com o
PÚBLICO. A direcção tripartida da
peça explica-se com uma sequência
de imprevistos. O previsto era que
SoÆa Lobo se ocupasse exclusiva-
mente da encenação, com o papel
de Medeia a ser assumido por Maria
João Robalo, actriz da companhia
que sofreu uma grave queda em
Julho, que obrigou a internamento
nos cuidados intensivos dos Hospi-
tais da Universidade de Coimbra. O
acidente abalou a estrutura e obri-
O mito é o mito e Medeia
é Medeia, mas o horror
fica na sombra
gou a redesenhar o plano. Maria João
apenas teve alta hospitalar no dia 7
de Outubro.
“A verdade era que já tínhamos
contratado as outras três actrizes”,
que acabaram por sugerir que fosse
SoÆa Lobo a dar corpo à mulher do
mito, conta a encenadora. Essa acu-
mulação de funções levou a que Igor
Lebreaud, também actor da Escola
da Noite, se tenha juntado à direc-
ção de cena, abdicando do papel de
Jasão — que Æcou nas mãos de
Miguel Magalhães. De Salvador da
Bahia veio Jarbas Bittencourt, que
inicialmente seria o director musi-
cal e acabou por ter uma interven-
ção maior. “Eles foram muito gene-
rosos em aceitar este director musi-
cal espaçoso”, resume o próprio
Bittencourt.
O cair da chuva é um dos sons que
acompanham parte de Desmesura,
contrastando com um borralho de
ténue incandescência, ao fundo da
cozinha. O povo responsabiliza
Medeia, estrangeira, pela pluviosida-
de ininterrupta, o que demonstra
uma das dicotomias que a peça tra-
balha, refere Igor Lebreaud: tensões
entre “uma cultura civilizada e uma
supostamente incivilizada ou entre
o racional e o irracional”.
Irracionalidade que o público vê
formar-se, mas da qual não vê as con-
sequências. Nas poucas didascálias
do texto, Hélia Correia escreve que
“as crianças nunca serão mais do
que uma sombra”, nota SoÆa Lobo.
No entanto, não sentiu sequer neces-
sidade nem desse elemento. “O mito
é o mito e Medeia é Medeia, mas esta
peça é um bocado mais seca. O
poder está na palavra e na decisão
tomada”, refere.
O horror Æca para lá das margens
escuras do palco e a violência é des-
viada dos olhos dos espectadores
para as palavras. Estas dão conta de
um processo que vai aproximando
Medeia de uma queda no abismo. “O
texto nunca diz ‘Medeia mata os
Ælhos’. Quando percebemos isso,
entendemos que não era esse o foco
da Hélia Correia”, nota Lebreaud. E
Bittencourt acrescenta: “A palavra é
tão forte que me informa da decisão
e do acto ao mesmo tempo.”
Perto do Æm, terminado o monó-
logo do desespero, Medeia sai de
cena. A decisão está tomada e nem
a advertência de que será lembrada
pelo horror a demoverá. A luz apaga-
se e a sala regressa à escuridão.
Teatro
Camilo Soldado
Companhia Escola da Noite
leva ao palco Desmesura ,
com texto de Hélia Correia,
a partir da peça escrita por
Eurípides na Grécia antiga
A peça trabalha
tensões entre uma
cultura civilizada
e uma
supostamente
incivilizada ou
entre o racional
e o irracional
Igor Lebreaud
Co-encenador
CORTESIA DE EDUARDO PINTO/ESCOLA DA NOITE
A versão de Hélia Correia coloca a tragédia no espaço doméstico
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Arquitectura
Isabel Salema
O prémio carreira é dado
pela primeira vez
pela Academia
de Belas-Artes francesa
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“É uma grande honra, porque é um
prémio importante. É a primeira vez
que a Academia de Belas-Artes dá
este prémio carreira”, explica o
arquitecto Álvaro Siza ao PÚBLICO,
comentando a atribuição na quarta-
feira do Grande Prémio de Arquitec-
tura da Académie des Beaux-Arts,
pelo conjunto do seu percurso, no
valor de 35 mil euros. O arquitecto,
que esteve em Paris para receber o
Prix Charles Abella, proferiu uma
conferência no Instituto de França,
que junta as cinco academias de
letras, artes e ciências, onde agrade-
ceu “com emoção e humildade” o
facto de ser o primeiro laureado. Este
prémio, que tem um carácter inter-
nacional, deverá alternar, num
modelo bienal, com outro galardão
que já era atribuído e dedicado a
jovens arquitectos.
Álvaro Siza, que discursou debaixo
da bonita cúpula do Instituto de Fran-
ça, como o próprio fez questão de
sublinhar, lembrou a sua primeira
viagem a Paris em 1967, “há muito
desejada e necessária”, que durou 15
dias, onde viu obras de Le Corbusier
e de Picasso, mas também de Sau-
vage, Charreau ou Perret: “Paris não
era para mim o centro do mundo,
como ouvia dizer. Era a cidade aberta
a todo o mundo, como deveriam ser
todas as cidades, como exige o pró-
prio conceito de cidade. A expressão
Siza recebe Grande
Prémio da Academia
de Belas-Artes
francesa
centro do mundo sugere de algum
modo uma ideia de marginalização
de periferias. Mas as periferias foram
ou vão-se sucessivamente revelando
como outros centros de cultura.”
Durante a cerimónia, o arquitecto
português conversou também com
François Chaslin, correspondente da
secção de arquitectura da academia
e crítico de arquitectura, que subli-
nhou a capacidade de Siza “em ligar
o passado ao presente, permitindo ao
futuro que se instale”, lê-se no Twitter
da instituição francesa.
Ao entregar este novo prémio ao
arquitecto português, “a academia
francesa quis mostrar o respeito que
lhe inspira este grande mestre”,
escreveu o jornal francês Le Monde.
A academia lembra no seu comunica-
do de imprensa que Siza tem apenas
um edifício construído em França, a
Igreja de Saint-Jacques-de-la-Lande,
próximo de Rennes (Bretanha), inau-
gurada em 2018, além de um projecto
de urbanismo para o centro de Mon-
treuil (1990-2000).
No Instituto de França, conta Álva-
ro Siza, estavam presentes nomes
conhecidos da arquitectura como
Dominique Perrault e Christian de
Portzamparc, mas também muitos
outros, como Laurent Beaudouin,
“um arquitecto amigo há muitos
anos”, ou Dominique Machabert,
“um jornalista que tem escrito sobre
a arquitectura portuguesa”. O júri,
que escolheu Siza “pela exemplarida-
de de uma trajectória”, era constituí-
do por Marc Barani, Bernard Des-
moulin, Dominique Perrault, Alain-
Charles Perrot, Jacques Rougerie,
Roger Taillibert, Aymeric Zublena e
Jean-Michel Wilmott.
ACADÉMIE DES BEAUX-ARTS
Álvaro Siza entre arquitectos franceses (Dominique Perrault à dir.)