A última criada de Salazar

(Carla ScalaEjcveS) #1

que os interrogam e aconselham, que policiam os seus estudos e que com eles
brincam.»
O enviado do jornal Catholic Herald, de Londres, insuspeito de
esquerdismos, descreve Portugal como país «de costas voltadas à Europa»,
afastado das «principais correntes de pensamento» e com padrões de vida
«ainda muito baixos». Mas, naquele ano, nem tudo está perdido no caminho
para o progresso: o Banco Espírito Santo ensaia o antecessor do multibanco, o
«self-banco». Os guardas-noturnos abandonam o antiquado chanfalho e adotam
o cassetete, «novo símbolo do poder» para propiciar uma «boa cacetada à
século XX».
Os costumes, de resto, não escapam à sanha policial. «É proibido beijar na
primavera», escreve o Diário Popular, relatando o julgamento de um par de
namorados no Tribunal de Polícia, apanhados a beijar-se num banco de jardim.
As Nações Unidas têm Portugal atravessado: condenam o colonialismo
nacional e o uso «de armas de destruição em massa na Guiné». A polémica é
servida à hora do chá: o político trabalhista britânico William Baxter diz-se
«horrorizado» ao descobrir que as colheres com que os deputados mexem o
five o’clock tea são « made in Portugal». Por cá, há quem se ofenda: «Quem
não tem de que falar, fala de colheres.»
A inauguração de um novo posto do Totobola tem mais espaço nos jornais do
que as sintéticas e lacónicas notícias da morte dos combatentes no Ultramar,
que a imprensa glorifica. O filão e o filete de jornal estão, pois, reservados para
as condecorações dos «valentes» que lutam «contra os terroristas» que
ameaçam o Portugal além-mar.
O bispo de Nampula bem reclama no Pavilhão dos Desportos a passagem de
uma «conceção estática da ordem das coisas» para uma fase «dinâmica e
evolutiva», escutados «os sinais dos tempos». Mas os jornais preferem destacar
«a superioridade da raça portuguesa».
Portugal em página de jornal é um desfile de governantes, discursos na
íntegra, prémios, condecorações, homenagens, jantares, assembleias gerais,
caridadezinha, tomadas de posse, receções, conferências e inaugurações de
obras públicas ou exposições de aves canoras e ornamentais, onde é raro faltar
o Presidente da República. Américo Tomás está ele próprio votado a
ornamento do regime, «almirante de opereta cujos discursos constituíam
motivo de chacota», recordará o jornalista José Carlos de Vasconcelos.
As tragédias humanas, postas em letra redonda, têm sempre «pobrezinhos»,
«irmãozinhos» e uma ou outra «velhinha». A adjetivação do quotidiano

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