A última criada de Salazar

(Carla ScalaEjcveS) #1

mais do que um LP (90 escudos). O comboio especial para ver o Braga-Benfica
custa 145 escudos, menos cinco do que a viagem de ida e volta entre a capital e
o Porto nos mesmos carris.
Um apartamento nas grandes cidades fica paredes-meias com uma dívida
para a eternidade: 220 contos, no mínimo. Dez mil contos é a lotaria, a «sorte
grande». Terminação é a pensão mínima de invalidez, velhice e sobrevivência,
500 escudos.
Em Portugal, no ano de 1968, circulam meio milhão de automóveis, 200 mil
«sem condições mínimas de segurança». Morrem mais de três pessoas por dia
nas estradas. Há 700 acidentes de trabalho e o «desdobramento de profissões» é
assunto das colunas femininas.
O Século incentiva os organismos de Estado a abrir vagas para jovens entre
os 17 e os 20 anos: «Não é justo nem cristão», escreve-se, que sejam
despedidos ao fim de três ou quatro anos a substituir os recrutados para a
Guerra Colonial. As mães dos soldados choram convulsivamente nos cais de
embarque dos navios, sufocadas pela PIDE, sem que uma lágrima comova os
jornais.
As remunerações no Estado e no setor privado são tão diferentes como o
cordeiro e o lobo. A indústria farmacêutica, queixa-se a imprensa, ignora «a
responsabilidade enorme na defesa da saúde pública», optando por aumentar o
preço dos medicamentos e manter os lucros.
Os industriais de pastelaria disfarçam: oferecem 400 folares aos pobres pela
Páscoa.
Maria de Lourdes Modesto apresenta na RTP sugestões para refeições leves
com novos tipos de pão: de forma, de leite, de ovos, de frutas, integral ou
glutinado, brioche ou croissant. O pão quotidiano «sabe a merda», mas não se
diz em voz alta. A Inspeção-Geral das Atividades Económicas aperta o cerco
ao comércio de pão, leite, bacalhau, ovos, azeite e carne congelada. Reprime
matanças clandestinas de bovinos e descobre milhares de garrafas com água
insalubre do Mondego vendidas ao público como... Carvalhelhos.
A nação vive uma época «de pressas, de vertigem».
Novos e velhos querem «chegar depressa» a qualquer lado, «passar à frente
do seu semelhante» ou «fazer rapidamente o que deve e o que não deve». Para
muitos, cultura é sinónimo de pequeno livro, historieta de aventuras,
«romancinho cor-de-rosa». Outros leem às escondidas obras proibidas, forradas
para esconder a capa, não vá ver-se o título e o autor. Em casa, «são raros os
pais que se interessam pela vida dos filhos, que vigiam os seus procedimentos,

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