certas coisas, nem sofreremos certos desgostos. O Bissaya e eu dizemos isto
muitas vezes um ao outro. É uma grande consolação!», comenta.
Nos bastidores do regime borbulham ansiedades, resguardam-se negócios,
interesses e posições para o dia em que Salazar já não estiver neste mundo.
«Acelera-se um processo de fuga», nota Franco Nogueira, ministro dos
Negócios Estrangeiros. «Alguns afirmam que nunca colaboraram com a
situação política, nem desta jamais auferiram benefício; outros descobrem-se
de súbito vítimas, lesados em negócios não consentidos, frustrados em
pretensões indeferidas, até perseguidos por divergência política.» Uns quantos
recordam «as afrontas», reais ou imaginárias, «os conselhos que, se escutados,
teriam evitado erros, as previsões desdenhadas que haveriam poupado
calamidades». Em resumo, coragens e coerências adormecidas desfilam
tardiamente convenientes, propícias a lançar pontes para o amanhã.
Neste clima de pós-salazarismo antecipado, as almas escolhem Deus e o
diabo. «Move-se um mundo nebuloso, um caos de ambições, lutas,
contradições, projetos, compromissos, pavores, incoerências, ódios, vinganças,
oportunismos», vislumbra Franco Nogueira. Posicionamentos que requerem
olímpica elasticidade: por um lado, há que durar com Salazar, manter
afinidades com o poder vigente e eventuais protagonistas de uma transição que
mantenha a arquitetura dos favores e das influências e as engenharias dos
benefícios e da fortuna. Ao mesmo tempo, lançam-se redes às forças
oposicionistas, também seduções e riquezas, na tentativa previdente de comprar
sobrevivências e posições num cenário em que tudo se desmorone.
Enquanto isso, não falta quem insinue disponibilidade para aberturas e
flexibilidades até à data impraticáveis, certos de virem a ser, até pelas leis da
vida, garantia de futuros mais aperfeiçoados e arejados, onde caberão todas as
espécies que recusam extinguir-se com o homem que as criou e alimentou.
Neste cenário, a que não é totalmente alheio, Salazar aceita partilhar o jantar
do seu dia de aniversário, um domingo, com o velho patriarca e amigo de
Coimbra, Manuel Gonçalves Cerejeira.
Haviam sido, em tempos, «a consciência um do outro».
Afastaram-se, ora crispados, ora silenciosos, mas sem nunca se
desentenderem naquilo que era a essência do regime. Neste tempo, caminham
ambos, solitários, para o descanso da existência.
O convite para essa noite não parte do ditador. Antes se insinua o clérigo,
numa carta enviada dois dias antes: «António: não quererias dar-me as tuas
sopas no jantar do próximo dia 28?», questiona Cerejeira. «A Providência já
carla scalaejcves
(Carla ScalaEjcveS)
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