A última criada de Salazar

(Carla ScalaEjcveS) #1

Passaram, entretanto, três dias.
Ao final da tarde, uma esquadrilha de jatos rompe os céus do Vimieiro.
Relâmpagos e trovões protestam, ameaçadores.
As nuvens carregadas tornam ainda mais lúgubre a entrada para o cemitério.
Não está ainda muito preenchido o terreno doado à autarquia pela família de
Salazar. Veem-se apenas meia dúzia de jazigos, mas ladeiam-no muros brancos,
caiados de fresco.
Entra-se e à esquerda estão enterrados, em campa rasa, os pais do antigo
Presidente do Conselho, António de Oliveira e Maria do Resgate, e a irmã
Elisa.
Não se vê um cipreste, quase não há árvores. Mas as poucas que existem dão
sombra às sepulturas familiares.
Meticuloso, Salazar cuidara dos pormenores com grande antecedência. Em
tempos idos, dera instruções para preparar quatro pedras tumulares, cortadas de
um cabeço existente ao fundo do seu quintal.
As pedras foram destinadas às três irmãs sobrevivas e a si próprio. Pedirá que
estejam sempre limpas e polidas.
A dele teve de esperar 15 anos pela chegada do corpo, ao som da marcha
fúnebre tocada agora por uma banda militar, que a alguns, já dentro do
cemitério, mais parece um gemido longínquo.
No Vimieiro, cumpre-se apenas a última parte do desejo expresso em vida
por Salazar: regressar à terra. «Creio, aliás, que em alturas como esta se
deveriam omitir palavras profanas que mais nos fazem reparar nas coisas
precárias e caducas da existência terrena dos homens», lê, de voz arrastada,
Afonso Queiró, proclamando que o ditador «vive e viverá porque subiu e
passou definitivamente a pertencer ao mundo imperecível do Espírito».
O diretor da Faculdade de Direito de Coimbra é escutado de perto por figuras
com credenciais, de rosto fechado e lágrimas escorrendo pela face.
Ao longe, gente da terra vai sendo prensada contra o portão de ferro.
Enquanto mãos anónimas lançam cravos para a campa aberta e homens do
regime já conspiram sobrevivências na colina da aldeia, uma vida inteira separa
as duas mulheres que choram juntas uma última vez, olhos postos no caixão
coberto com a bandeira nacional.

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