A 17 de setembro, reúne o Conselho de Estado, em contexto de emergência
nacional. Há já uma certeza: Salazar não voltará a assumir funções de Estado.
Na véspera, Américo Tomás falhara na tentativa de encontrar um sucessor.
Estranha-se agora que Marcello Caetano, há tantos anos ausente destas
reuniões apesar de convocado, compareça. Será ele, de resto, um dos
defensores da tese de uma imediata substituição do Presidente do Conselho.
Por muito que as opiniões médicas se dividam, por muito que salazaristas
rígidos confiem à divina providência o milagre da salvação do «chefe», Salazar
está entregue a uma sentença de ciência exata: aos 79 anos e com tais
fragilidades, pouco durará. O máximo que dele podem esperar é uma existência
precária. Nem sempre lúcida e, a todo o tempo, amparada.
O velho ditador paralisara de um dos lados do corpo, perdera metade da
visão nos dois olhos e toda a memória recente era incerta, inconstante, por
vezes remetida às mais sombrias profundezas. Todo ele é, enfim, passado. Um
passado mais do que presente, contudo.
Os meses seguintes, ilustrados por desavenças médicas quase a atingir cenas
de pugilato e pelas melhoras e recaídas do «cadáver empalhado», no dizer de
Mário Soares, exasperam os amigos e colaboradores mais próximos. Mas não
só. Também Eduardo Coelho, seu médico pessoal, se impacienta com os
políticos que «pululam» na casa de saúde onde Salazar continuará internado.
«Querem meter o nariz em tudo e onde não são chamados», desabafa.
Irrita-o a presença constante de senhoras que se reúnem na Cruz Vermelha
«para tomarem chá e fazerem croché». Senhoras que «‘‘adoram’’ Salazar, que
se apaixonaram por ele» e que «têm todas uma vida marital desavergonhada».
Nesse espaço de tempo, o regime saíra do coma.
Marcello Caetano fora nomeado substituto de Salazar a 26 de setembro,
inaugurando um período de governação que ele atribuía «aos homens como os
outros» por oposição a um estadista «de génio». Nativo de Leão,
provavelmente não lera os astros: «Tenha cuidado de não aumentar o embaraço
da situação de qualquer maneira. Dê bastante atenção às pesquisas, estudos e
esforços para encontrar a solução para os problemas que o preocupam», reza o
seu horóscopo do dia da posse.
Miguel Torga, da sua barricada intelectual e oposicionista, interrogava-se:
«Sem hábitos de liberdade e aliviados da canga do opressor, que alimentava em
nós, apesar de tudo, um salutar complexo de Édipo, a que outra razão de luta
iremos pedir energias? Por quem substituiremos o pai tirano que
combatíamos?», escreve.
carla scalaejcves
(Carla ScalaEjcveS)
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