A última criada de Salazar

(Carla ScalaEjcveS) #1

de facto por causa do acompanhamento médico do doente ilustre. Há um fosso
entre eles. No diagnóstico e nos procedimentos, mas também nos feitios.
O médico pessoal de Salazar indigna-se com a postura dos ministros, do
chefe de Estado. A Secretaria de Estado da Informação recorre à censura e
impede que os boletins médicos se refiram a melhorias no estado de saúde do
governante substituído. Só interessam as notícias sobre a sua incapacidade e
impossível recuperação. Para a nova ordem, Salazar tem de «morrer»
lentamente, mesmo que revele melhoras. Está em curso, segundo Eduardo
Coelho, a estratégia do esquecimento, a encenação do último capítulo de vida
do homem cuja situação clínica não pode nem deve alimentar esperanças e
conjeturas sobre o seu regresso: «O Governo não quer que se saiba que o Dr.
Salazar tenha recuperado extraordinariamente, tanto da motricidade dos seus
membros, como do seu cérebro e da sua mente? Onde estamos nós? Num país
de doidos? De débeis mentais, já se sabia, mas com tanta maldade não
supunha», dirá Eduardo Coelho ao ministro do Interior, Gonçalves Rapazote.


Entra-se em 1969 e Salazar volta a ter noites agitadas.
Exalta-se e impacienta-se: «Quero que a Maria mande vir um fato de casa»,
pede. «Quero ir embora», insiste. Américo Tomás visita-o e leva na memória a
imagem de um homem «muito caído», com a «voz bastante fraca». A mente do
velho ditador fraqueja, navega em incertezas, lampejos de raciocínio. «Quando
sair daqui, para onde vou? Não tenho casa, não tenho para onde ir. Para onde
hei de ir?», questiona-se. Governantes de turno ainda insinuam que o antigo
chefe do Executivo terá de deixar vaga a residência de Estado. Porém, até à sua
morte, continuará a viver em São Bento, uma última concessão de Marcello
Caetano.
Com a memória nebulosa para acontecimentos recentes, são os assuntos do
passado que ainda iluminam os seus diálogos. Christine Garnier vem de Paris
para uma visita que será de despedida e dois dedos de conversa, que muito a
abalam. Para ela, o ditador morrerá ali: nunca mais falará em público do
homem que retratou em livro.
Em poucas semanas, a convalescença de Salazar esmorecera na agenda
mediática. Os jornais dedicam cada vez menos espaço ao seu internamento,
findam as extensas reportagens à porta da Cruz Vermelha, o interesse noticioso
segue agora o zumbido dos novos protagonistas, dos seus feitos e obras.
Sai de cena o ditador, esquecido e censurado ao sabor das diretrizes dos

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