A última criada de Salazar

(Carla ScalaEjcveS) #1

sínteses e comentários do seu quotidiano de trabalho.


Nas primeiras semanas, os rituais do antigo governante pouco diferem dos
seis meses passados na Cruz Vermelha. É observado diariamente por Eduardo
Coelho e várias enfermeiras revezam-se nos cuidados ao longo das 24 horas de
cada dia.
Rosália é a mais nova das empregadas e a mais forte fisicamente. Por isso, a
sua ajuda é solicitada com frequência, anda sempre num virote. Salazar é
submetido a várias drogas e terapêuticas, exercitam-lhe alguns movimentos,
para ver como reage. Tem o lado esquerdo paralisado, está praticamente cego
de uma vista. As noites são de insónias, dorme aos bochechos.
Alienado, silencioso e distante boa parte do tempo, tem, todavia, cintilações
que o trazem de volta à realidade, num claro-escuro de curta duração, como se
um interruptor o ligasse e desligasse do convívio dos outros.
Mas há relatos surpreendentes.
Cerejeira visita-o por esses dias. Conversam durante uma hora. «Mas que
diferença! Que recuperação!», espanta-se o cardeal-patriarca. «Se o não tivesse
visto como vi, tão doente, não acreditava! Estivemos a conversar sobre os
problemas atuais da Igreja, quantos ensinamentos ele me deu», admitira a
Eduardo Coelho.
Nos dias mais prazenteiros, Salazar dá passeios de automóvel pelos arredores
de Lisboa, acompanhado por velhas amigas, pela governanta e um par de
enfermeiras que sempre o ampara.
Rosália empurra a cadeira de rodas, dando voltas com ele nos jardins da
residência de São Bento. «Até nos tiraram uma fotografia, que ele ainda
autografou para mim. Ele gostava muito que eu estivesse ao pé dele», conta a
empregada.
Salazar passa tardes no cadeirão.
«Chame-me a pequena», ordenava, amiúde, à governanta, que não disfarçava
a contrariedade com o pedido.
Rosália sentava-se então ao lado do ditador, no escritório, a contar episódios
e histórias divertidas de Favaios, que ele adorava ouvir, rindo-se a bom rir, sem
se cansar das repetições. Passagens que Rosália guardara desde menina.
«Contava muito a história do burro branco. O meu pai tinha um desses animais,
já velho, que, a dada altura, estava cravejado de piolhos. Então um dia
disseram-lhe: “sabe como é que saem os piolhos do burro? Unte-o com

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