ordens, sugestões, planeamentos. Américo Tomás finge o espírito das reuniões
entre ambos. Diplomatas são recebidos como se aguardassem diretrizes. Nas
breves ocasiões de lucidez, Salazar reflete sobre acontecimentos políticos
internacionais com a sabedoria e a intuição de sempre. «São invocados
assuntos ou problemas do passado – um ou dois anos antes da queda – e
Oliveira Salazar então aproxima-se, adere, discorre com quase normalidade: a
memória é pronta e fiel, o raciocínio é claro, a lucidez não tem falhas
aparentes», regista Franco Nogueira. Mas o presente, a atualidade são, para ele,
alçapões onde, com frequência, mergulha indefinidamente, atingido por
anestesias de espírito e abismos sem qualquer possibilidade de resgate para as
conversas daqueles que o rodeiam.
À mesa, sentam-no com esforço e cuidado extremo.
Os braços sem forças, o corpo sem energia, Salazar é um ser vivo quase
inerte, que mastiga sem apetite, nem gosto, um nico de vagens, uma rodela de
fruta. No entanto, assalta-o preocupação antiga, remoída: quando e como voltar
para Santa Comba para o descanso final da existência? E a mobília: vende-se?
Mas quem quer os trastes arrumados em Lisboa, que de outros já a casa das
Ladeiras está atulhada? Melhor seria despachá-los num leilão em hasta pública,
mas quem os comprará, se «não valem um pataco falso e furado?» A ironia é
breve, vem e vai. «Depois, entra a noite no espírito de Salazar», que é já um
despojo humano. «Fica ausente, alheio, mudo, muito longe, apenas existe»,
retrata Franco Nogueira. «A atmosfera da sala sufoca e esmaga, povoam-na
fantasmas, há drama escrito nas coisas, o tempo imobilizou-se», descreve o
antigo ministro.
Íntimos, amigos e colaboradores questionam-se: o que é que Salazar conhece
ou desconhece? Saberá ele, sem o dizer, que já não governa? Saberá que o
substituíram? Sabendo isso, aceitaria manter-se na mesma casa, com regalias
de Estado e exposto a tal afronta? «O senhor doutor pensava que ainda estava a
comandar o País. Por vezes, nem sabia onde se encontrava», assegura Rosália,
recusando admitir que o patrão alguma vez tivesse lucidez suficiente para
entender o que acontecera.
Paulo Rodrigues, no entanto, acreditava no disfarce.
Para o secretário particular, Salazar fingia a sua condição, para melhor se
aperceber do que diziam e faziam com ele. Saberia tudo, mas o estado de
morbidez impedia-o de encarar a verdade, enfrentar o ridículo. «Você está bem
acompanhado nessa opinião. A minha mulher também pensa assim», dir-lhe-á
Franco Nogueira. O ministro, porém, não tinha «a menor dúvida» de que ele
carla scalaejcves
(Carla ScalaEjcveS)
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