A última criada de Salazar

(Carla ScalaEjcveS) #1

couro, assente em pequenos suportes de madeira, para dar mais altura. Por cima
da cabeça, o aniversariante recebe a luz direta de um abajur de metal.
Diante dos olhos, num suporte reclinado como se olhasse uma partitura,
Salazar lê, apenas com a vista direita, a folha com o pequeno texto que
preparara, seguindo as linhas com o indicador, trémulo, em riste. «O número de
pessoas que se interessaram pela minha saúde e vida, quando gravemente
comprometidas, comoveu-me profundamente», começara por dizer, com uma
voz que parece vinda do além, continuando: «É a primeira vez que me
apresento em público e não podia deixar de ter no meu espírito toda essa
manifestação de amizade, carinho e interesse para lhe render o tributo da minha
gratidão. Deus foi infinitamente bom para com as nossas súplicas e
demonstrações de aflição. Pedimos-Lhe que nos continue a ajudar e a
proteger.»
São dois minutos e uns quantos segundos fatais.
As imagens que chegarão a casa dos portugueses não deixam mais margem
para dúvidas: Salazar é aquilo. E é precisamente aquilo que os novos senhores
do regime pretendem mostrar ao País: um discurso fúnebre, lido por um
homem exposto na sua decadência mental e física, fantasma de uma época.
Uma «segunda morte» encenada de forma maquiavélica que «mostrava um
pobre velho doente, confuso e balbuciante», dirá o investigador e escritor Jaime
Nogueira Pinto.
Logo se comenta o acontecimento, avançam-se teorias conspirativas: a
perfídia fora orquestrada nos corredores do Governo, tendo os órgãos de
informação do Estado colaborado na montagem. O presidente da RTP, Ramiro
Valadão, é suspeito de preparar a encenação degradante do enterro público de
Salazar com a bênção de Moreira Baptista, o titular da pasta da Informação e,
talvez, do próprio Marcello Caetano.
O médico Eduardo Coelho recebe de Bissaya Barreto a informação
confidencial de que alguém da administração do canal de televisão fora
demitido dias antes «para que pudessem manobrar à vontade o filme de
Salazar», deteriorando a imagem o suficiente para dar do ditador um aspeto de
grande fraqueza. Na verdade, nem era preciso, mas ter-se-á carregado nas
tintas.
O antigo chefe do Governo é exibido numa postura que roça o patético pela
propaganda do mesmo regime que durante décadas, com idêntico refinamento e
servilismo, maquilhara as suas palavras e gestos para consumo interno. Os
últimos minutos de Salazar vivo mostram um cadáver adiado, hesitante,

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