Salazar, Tia Mariquinhas e Ti António Feitor para os conterrâneos. João
Falcato, jornalista do Diário de Notícias, também entrara à socapa na
residência, disfarçado de ajudante do escultor. «Mas o jornalista não conseguiu
vencer o homem» e o repórter dera meia volta. O escultor abandona a
residência ao final da tarde. Guardará as duas peças no ateliê pela vida fora,
sem que alguém as tenha pago ou mandado buscar.
No dia da morte de Salazar, Eduardo Coelho vertera para o seu diário um
epitáfio do seu doente. Além das «complicações gravíssimas», o cardiologista
juntara ao drama vivido pelo falecido «as dores do espírito» e «as dores da
alma». Sentira que «antigos ministros, os que lhe deviam tudo, os que ele
colocou em lugares chorudos» o abandonaram, na sua maioria, «não lhe deram
assistência moral».
A hipócrita homenagem ao morto tinha-a agora Eduardo Coelho, diante dos
olhos, protagonizada por homens esquecidos do próprio esquecimento de
Salazar durante a doença, pois já então andavam de noivado com o
oportunismo e a vontade de agradar aos novos mandantes. «Eu próprio lhes
pedi que o visitassem. Nunca puseram os pés em São Bento», recordará, nos
seus escritos, o médico. «Que tristeza! Podia juntar os nomes dos que faltaram.
E como ele sentia os que faltavam», escrevera, concluindo: «Fizeram dele o
exilado de si próprio.»
Marta, irmã mais velha de Salazar, chega a Lisboa na madrugada de 28 de
julho e é logo posta perante questão delicada: decidir se o irmão deve ou não
ser embalsamado. A relação entre ambos, carente de afeições familiares de
grande proximidade, sempre fora respeitosa, mas nunca de molde a tomar
responsabilidade de tal envergadura. Ela, atarantada com a incumbência, opta
pelo embalsamento, que terá de ser deixado para o dia seguinte, pois a noite vai
longa.
Ao amanhecer, precipitam-se novas urgências, aceleram-se os preparativos
do transporte de Salazar para o Mosteiro dos Jerónimos.
Nos seus aposentos, há uma persiana ligeiramente subida por onde entra a
aragem que faz ondular lá fora a cabeleira das palmeiras do jardim.
Magalhães Monteiro, jornalista afeto ao regime, olha a cama vazia e observa
os delicados movimentos de uma freira que alisa a colcha e recompõe as flores.
Bissaya Barreto saíra dali amparado, inconsolável. O resto são mulheres, umas
viúvas, outras casadas com militares, outras ainda desconhecidas do repórter.