A última criada de Salazar

(Carla ScalaEjcveS) #1

O que resta de Salazar está em câmara ardente, o capelo rubro envolvendo os
ombros, crucifixo e terço entrelaçados nas mãos «amarelecidas como marfim
velho onde afloram sinais roxos de uma longa jornada de sofrimento». A luz
das lâmpadas é branda, quatro círios ardem preguiçosos e um relógio, ao longe,
magoa, a cada quarto de hora, o silêncio de quem vela pelo ditador.
São rostos fechados e gestos pausados que permanecem os mesmos por horas
que parecem não ter fim. Há quem se debruce sobre o ataúde e passe as mãos
pelos cabelos brancos de Salazar. Acumulam-se cravos aos pés do morto, que
uma mulher afaga com discrição. Sem que a maioria dos presentes note, corta
uma das flores, leva-a ao rosto do antigo chefe do Governo e guarda-a, com a
mesma elegância, na bolsa. Ao final da tarde, este cenário de vidas em câmara
lenta é interrompido: «Minhas senhoras, façam o favor... Chegaram os
médicos.»
Apressam-se as despedidas, descem-se as escadas para o rés do chão do
palacete. «O Senhor Professor está atrasado... e tem que começar a trabalhar.»
O professor é Arsénio Nunes, que vai proceder ao embalsamento do cadáver.
Enfermeiras sobem e descem no afã de não esquecer qualquer pormenor. «Por
favor, senhores! O Senhor Professor está atrasadíssimo. Não pode esperar mais.
Há que levar o Senhor Presidente e faltam-nos as forças para isso. Receamos
deixar cair o corpo. Podem ajudar-nos?», desafia uma enfermeira que desce as
escadas a correr.
Os esforços distribuem-se de forma desequilibrada à volta da urna. Muitas
enfermeiras e um desconhecido de um lado, o jornalista Magalhães Monteiro
do outro, um agente da polícia política aos pés. «Seguremos no lençol e
levemo-lo assim», sugere-se. «Não. Podemos deixá-lo cair», recusa uma
enfermeira, sugerindo antes que os presentes juntem as mãos sob o cadáver.
Com mãos trémulas, levam-no finalmente para o quarto onde o professor
Arsénio e um assistente aguardam para iniciar o embalsamento. «Cuidado com
este braço», ouve-se. Mas tudo é feito com cautela e destreza.
Salazar está entregue.
Dali seguirá para os Jerónimos, antes da última viagem para o cemitério do
Vimieiro. Comparando-o ao Pensador, de Rodin, recordando o político fiel «à
gleba e à lareira» e o «voluntário da solidão, como o Infante das Descobertas,
que fez da sua casa de São Bento a sua Escola de Sagres» monsenhor Moreira
das Neves proferira a homília fúnebre: «Depois de tantas lutas, nem sempre
conhecidas nas suas determinantes, e de tamanhos sacrifícios, nem sempre
dignamente avaliados na sua verdade mais íntima; depois de tantas

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