A última criada de Salazar

(Carla ScalaEjcveS) #1

habitava com duas antigas empregadas de São Bento. Para seu sustento, um
grupo de amigos e amigas de Salazar – e dela – decidira depositar dinheiro
todos os anos numa conta do Banco Espírito Santo e crê-se que ela nunca
soube quem fazia os depósitos.
Para trás, tinha ficado uma intenção de Salazar, nunca concretizada: construir
uma casa para a governanta em Santa Comba.
De resto, iniciara-se, logo após o falecimento de Salazar, um imbróglio
jurídico relativo aos bens e objetos deixados no palacete de São Bento.
A governanta devolvera intacto o recheio da casa que tinha sido entregue
pelo Estado e que Salazar mandara embrulhar e acomodar numa divisão da
moradia, preferindo usar o que fora pago e comprado por si. Mas nem tudo
ficara esclarecido.
Nos primeiros dias de agosto de 1970, ainda mal refeita da morte do irmão,
Marta Salazar fora informada pela Presidência do Conselho de Ministros da
necessidade de indicar quem deveria representar as herdeiras no processo que
levaria «à identificação e separação de bens e objetos que devem considerar-se
propriedade do Estado» e os que deveriam ser tidos «como pertencentes às
referidas herdeiras», bem como «tomar as disposições convenientes sobre o
destino a dar-lhes», lia-se num aditamento que se crê lavrado pelo próprio
Marcello Caetano. Salazar não fizera qualquer testamento nem teve,
aparentemente, qualquer preocupação com o que poderia suceder ao seu
património após a morte, sendo certo que também não estava convencido da
sua imortalidade.
O caso foi tratado nas mais altas instâncias do regime, envolvendo ainda o
ministro da Justiça e o procurador-geral da República, sinal de que os despojos
de Salazar constituíam melindroso assunto. Não havendo antecedentes legais
sobre a forma de proceder em situações como esta, seria determinado que
cartas-missivas e papéis existentes nos arquivos ou fora deles constituíam
propriedade do Estado, dada a íntima relação com as funções exercidas. Livros
e outros objetos pessoais de Salazar, não adquiridos com dinheiros públicos ou
oferecidos ao Estado, deveriam, por outro lado, integrar a herança, embora se
admita que alguns pudessem ser direcionados para uma futura casa-museu.
Curioso, porém, foi o facto de Marcello ter guardado para si a
correspondência trocada com Salazar ao longo de décadas, quando esta deveria
fazer parte do arquivo do seu antecessor à guarda do Estado. O advogado Pais
de Sousa, sobrinho do ditador, que recebera procuração da família para tomar
conta dos seus bens pessoais, queixou-se então de lhe ter sido vedada durante

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