A última criada de Salazar

(Carla ScalaEjcveS) #1

Entra-se em 1966 e Maria de Jesus continuava sem se recompor na
totalidade. Em domingos de sol, Salazar passeia com ela de automóvel pelo
Ribatejo. Mas até março, as consultas médicas da governanta serão quase
diárias e, por vezes, dia e noite.
O desarranjo no quotidiano do chefe do Governo é assunto de Estado. Maria
tem doença grave: coração atingido, arteriosclerose, coronárias afetadas...
Lança «a perturbação na vida e nos hábitos de Salazar», notara Franco
Nogueira, numa das vezes que lhe perguntou pela «doente». Ele fala do assunto
com minúcia, descreve as maleitas, conta como Maria passa as noites. «Tudo
isto é uma perturbação porque ela é uma peça fundamental desta máquina que
não funciona sem ela e me escangalha a vida.»
Os desabafos sobre o estado de saúde da verdadeira dona da casa em São
Bento são também matéria epistolar. De Paris, o embaixador Marcello Mathias
pergunta pela governanta. «A Maria de Jesus vai um pouco melhor, mas
lentamente», responde Salazar. «Tem sido um grande problema, médico e
doméstico, como pode calcular.»
Mas não é o único.
A caminho dos 77 anos, Salazar vive angustiado com a possibilidade de já
não conseguir responder física e mentalmente aos problemas do País, que se
agravam. Nas ruas, a contestação do regime já surge às claras em diversos
setores, com greves, reivindicações e manifestos à mistura. Além-fronteiras,
aperta-se o cerco a Portugal, ora pela imagem que dá nas suas colónias em
África, ora porque a Península Ibérica parece agora governada por homens fora
do prazo.
O ditador pondera a retirada e disso se ocupa em conversas tricotadas horas a
fio. Mas teme deixar entrar o desgoverno das coisas públicas pela mesma porta.
«Estou perdendo faculdades. Não posso trabalhar como dantes. Já não
acompanho o ministério e os ministros fazem o que querem», ouve, da sua
boca, Franco Nogueira. «Isto não é vida», lastima. «Eu quero ir morrer a Santa
Comba, insisto em ser enterrado lá.»
Salazar teme, por esta altura, ter apenas mais um ou dois anos de vida.
Lamenta aos íntimos o facto de não deixar uma obra que marque uma época,
mas anseia, acima de tudo, terminar os seus dias em paz, entregue às flores e
aos passeios na «pequena quinta» do Vimieiro, repete, em conversas
emaranhadas, quase sem fim.
Trava-o apenas o facto de alguém pensar que, julgando tudo perdido, se vá
embora. Mas «não se pode esperar que eu fique inválido», adverte.

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