A intriga palaciana corre célere, reproduz nomes de sucessores a esmo. «Pela
ordem natural das coisas não pode estar distante o fim», escreve Franco
Nogueira, retratando esse tempo moribundo em que nada é ainda lícito fazer
contra Salazar e nada é já possível fazer com ele.
À porta de São Bento, nos aniversários da ditadura e do ditador, em abril,
tudo parece correr de feição. Chegam ramos de flores enviados por
admiradoras, mensagens, telegramas. Salazar, sorridente, deixa-se fotografar
entre grupos de mulheres e crianças que o visitam. Mas logo voltam as nuvens
negras, as inquietações com a sucessão, o fim próximo.
Nesse ano de 1966, Salazar quebrará um tabu.
Para poupar tempo numa deslocação que poderia revelar-se fatigante e
penosa dada a avançada idade, decidira fazer o seu batismo de voo entre Lisboa
e Porto, comprando bilhetes para si e para Maria, como qualquer mortal, como
qualquer casal. É verdade: o beirão conservador que governava a nação com
rédea curta e decidia o destino de territórios imensos além-mar, permanecera,
afinal, quase imóvel, pouco viajado mesmo dentro do País. Enclausurado no
seu palacete lisboeta, era um voluntário da solidão, do tédio e da melancolia,
com alguma misantropia à mistura.
Deslocara-se à Madeira, de barco, com o antigo colega de seminário, Mário
de Figueiredo, em 1924, para proferir duas conferências, viajar pela ilha e
gastar mil escudos em bordados.
Assistira, em novo, na companhia do Cardeal Cerejeira, a um congresso
católico em Bruxelas, para onde viajara de automóvel. Passara em Lourdes, a
caminho de Paris, também de carro. Ainda jovem, aventurara-se pelos
caminhos do turismo religioso em Espanha.
Já investido de funções governativas, habituara-se aos rituais de visitação ao
«generalíssimo» Franco, mas nunca tais cimeiras o fizeram afastar o suficiente
do conforto da raia luso-espanhola. Irrita-o, de resto, que os ministros se
ausentem do País, mesmo em serviço.
Por tudo isto, mais extraordinária se revelara a viagem de avião que o levara
ao Porto. Aí pernoitara, seguindo no dia seguinte para Braga, onde o esperavam
para as celebrações dos 40 anos do «28 de Maio».
O discurso ficará para a História como uma das mais notáveis e cínicas
encenações de desapego ao poder por parte de Salazar, que chega a ensaiar, por
segundos, a saída de cena, olhando por cima dos óculos na ponta do nariz,