A última criada de Salazar

(Carla ScalaEjcveS) #1

ligar a famílias amigas, indagar do estado de saúde de conhecidos, demonstrar
afeto num aniversário, preocupação por um acidente ou luto por aqueles que
estimara.
Naquele mesmo canto, «lia os jornais e depois deixava-os no chão», recorda
Rosália, que os apanhava. Salazar apreciou durante anos os artigos de fundo de
Augusto de Castro, no Diário de Notícias , e era frequentador das páginas
internacionais do matutino O Século, mas quase sempre desdenhando do que
lera: «Creio que é um vício porque o que aprendo não tem qualquer relação
com o tempo que perco», dissera certa ocasião, sorrindo, ao jornalista francês e
ativista de extrema-direita Ploncard d’Assac.
Segundo Anselmo Freitas, seu secretário particular na fase final da vida,
Salazar não seria tão mordaz com a imprensa. A leitura dos jornais era um dos
momentos mais apreciados do dia e suficiente para «servir de pretexto para
uma conversa amena», carregada de humor e ironia cortante. Ainda assim, a
letra impressa era vigiada à lupa. «O jornal é o alimento espiritual do povo e
deve ser fiscalizado como todos os alimentos», dissera ele ao antigo dirigente
do Secretariado da Propaganda Nacional, António Ferro, justificando a
censura.


Nesse entretanto, já a faxina da manhã se organizara entre as criadas.
Farda de trabalho vestida, ao xadrez, umas iam limpar os quartos, as outras
tratar dos corredores. «Todos os dias a mesma coisa.»
Sempre vigilante e mandona, a governanta inspeciona cada recanto. Passa os
dedos pelos móveis à cata de uma réstia de pó, protesta e embirra por causa de
algum pormenor deixado ao acaso. Quer tudo num brinco, cheiroso, a brilhar.
«Mas quando lhe dava na telha, mandava fazer de novo o que já estava bem
feito», sustenta Rosália.
Este é um mundo «com o seu quê de muito especial», no dizer do antigo
secretário Almeida Langhans, que atestava a «benevolência» de Salazar
«contra as investidas exageradas de uma governanta zelosa», cujas vítimas
eram «as criaditas de serviço».
Rosália é a mais nova, faz muita diferença das outras.
Mas nem por isso as responsabilidades são menores.
Todas as manhãs, a «pequena» mudava a água das flores do escritório do
Presidente do Conselho. Salazar era «muito amigo de flores», camélias
sobretudo, às quais «até fazia festas quando passava por elas no parque», o

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