A última criada de Salazar

(Carla ScalaEjcveS) #1

Rosália. «Não é possível devolver flores. E dão-me as únicas alegrias que me
são permitidas», confessara ele, certa vez, à francesa Garnier.


As flores eram, na verdade, o único colorido do espaço íntimo de trabalho do
Presidente do Conselho, sem que a luz do sol alguma vez tivesse contribuído
para alterar o aspeto soturno que se manteve praticamente inalterável durante
décadas.
Os seus olhos, frágeis, não admitiam a luz viva. «Era tudo muito para o
escuro e pesado. Cortinados castanhos, chão castanho, tapeçarias nas paredes.
E quando a caldeira estava fechada, todo o palacete era frio.» Daí o hábito das
mantas. E da escalfeta.
O escritório de Salazar fora, até determinada altura, local de diversas
conjeturas sobre doenças originais ou imaginárias, que ficaram conhecidas por
«males» de gabinete.
O Presidente do Conselho queixava-se da garganta e durante algum tempo
não houve explicação para tal. À sua volta, os sintomas tinham feito outras
vítimas. O mistério viria a ser desvendado após várias indagações: as cartas
escritas por Salazar – e até o envio de notas para os ministros – eram, até dada
altura, fechadas por ele, com uma lambidela no subscrito. Os secretários faziam
o mesmo. O processo, porém, irritava as mucosas e, como o sistema de
aquecimento central desidratava o meio ambiente, a «culpa» era atribuída ao
gabinete.
A solução para o problema seria encontrada pelo banqueiro Ricardo Espírito
Santo que, numa das suas habituais visitas, sugeriu que fossem colocadas
toalhas ou panos ensopados em água nos irradiadores do aquecimento. Mais
tarde, lá vieram os recipientes próprios para água e pincel, mantendo-se depois
a correspondência debaixo de objetos pesados, como um cão de mármore ou
um hoplita grego, em bronze e pedra, para selar em definitivo os subscritos.
Se dentro de casa as doenças eram «tratáveis», já no exterior os boatos sobre
o estado de saúde de Salazar galgavam a fronteira.
Nessas ocasiões, os colaboradores próximos insistiam na urgência do
«chefe» se mostrar em atos públicos, nem que fosse na inauguração de uma
exposição. «De maneira que estou outra vez doente...», ironizava Salazar
quando percebia que a solução era mesmo sair do palacete e cumprir uma
agenda destinada a revelá-lo ao povo são como um pero.
De ambiente severo, o escritório era a imagem de quem lá trabalhava.

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