A última criada de Salazar

(Carla ScalaEjcveS) #1

Silva Cunha, antigo governante.
O ditador era, nessas ocasiões, pouco dado a manifestações de apreço e
simpatia, bisonho e parco no adjetivo lisonjeiro e avaro nas referências
elogiosas. Intimidante, contava com o embaraço prévio dos que a ele se
dirigiam e não hesitava em reprovar eloquências ou afirmações superlativas,
reduzindo quase à insignificância quem se aventurava diante dele por esses
caminhos marcados por uma audácia inútil, comprometedora e leviana. «Não
defendo os erros de ninguém, nem sequer os que eu próprio cometa; não
absolvo nenhuma falta, não me solidarizo com nenhum abuso», dissera, num
dos seus discursos, em jeito de aviso à navegação.
«Quando nos encontramos diante de Salazar, há que pressentir, adivinhar
sempre e guardar as perguntas», aconselhara Christine Garnier, nos anos 1950.
A sua voz era «como um canto, baixa e doce», mas também se demorava «em
notas de aço» que gelavam o interlocutor. Uma espécie de lâmina de punhal
«brincando numa bainha de seda».
Salazar também reparava na ausência de formalismos e compostura,
reservando a sua melhor ironia para essas ocasiões. «O senhor não se esqueceu
de nada?», perguntou, em certo momento, a Luís Avillez, seu secretário
particular e fundador da Mocidade Portuguesa, que o aguardava no carro, com
várias pastas. O funcionário olhou em volta sem se aperceber de qualquer falta.
«E o chapéu?», insistiu o ditador. «Nunca usei, senhor presidente», respondeu
o secretário. «É bom comprar um. E preto», rematou Salazar.
Detestava pretensiosismos e arrogâncias mas, no trato diário, na relação com
quem confiava e admirava, alguns confessam nunca lhe ter notado o tão falado
autoritarismo de caráter.
Vários, na verdade, antecipavam-se a um eventual acesso de mau génio.
Ninguém fumava diante dele, por exemplo.
Era metódico, persistente e persuasivo. Para descartar quem já não precisava,
apurava cinicamente as formas de cortesia e amabilidade. Manipulava os
interesses e vaidades dos homens e controlava, direta ou indiretamente, tudo e
todos. As informações chegavam-lhe de todo o lado, e por diferentes vias, mas
sobretudo das elites políticas e económicas, sem que a PIDE fosse, por vezes,
para ali chamada. Mantinha sempre atualizado um ficheiro completo de todos
os servidores do Estado.
O seu distanciamento sempre fora da ordem da mitologia: houve «ministros
que passaram anos sem o ver», revelou Adriano Moreira.
Não tinha de si uma imagem de herói, sábio ou santo, mas agia com uma

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