A última criada de Salazar

(Carla ScalaEjcveS) #1

nos povoados falsamente alegres, notei os seus olhares embrutecidos»,
escreverá a romancista francesa. «Em todas as estações os mendigos invadiam
as carruagens.»
No Porto, vira «rapariguinhas esfarrapadas» esgravatar «avidamente»
caixotes do lixo». Por todo o lado, «filas de camponeses de pé descalço, as
mulheres curvadas com o peso dos fardos», crianças famélicas pedindo esmola,
«pardieiros onde as famílias se alimentavam de sardinhas pouco frescas».
Enquanto isso, «a burguesia portuguesa suportava muito calmamente a miséria
dos outros», essa mesma que deveria ser, no dizer de Lúcia, a redenção pelas
nossas transgressões religiosas.
O ditador, por seu lado, parecerá sentir-se bafejado por um sopro celestial,
por muito que a cumplicidade entre a Igreja e o Estado Novo nem sempre tenha
sido um caminho de flores. Mas Salazar irá amadurecer no cargo julgando
tratar-se de um eleito, carregado de poder e génio, «quase um ungido por
Deus», diria Gonçalves Cerejeira.


Longe do povo e do País que pouco se esforçara por conhecer, maçavam-no
as cerimónias públicas, considerando precárias, versáteis e leves como o vento
quaisquer manifestações de elogio ou entusiasmo público. «Não se pode, ao
mesmo tempo, encantar e governar a multidão», justificava. Daí a solidão e o
isolamento, imperativos da sua ação governativa, que, segundo ele, tornava a
ação de quem manda mais pacificada, independente e menos acessível às
influências exteriores.
Raramente aceitava convites para jantares ou festas, não só porque lhe
custava dar-se à confiança nas conversas de salão, mas também porque
rejeitava ser condicionado por pedidos e favores, à boleia de amenas e
descontraídas cavaqueiras, na liderança dos assuntos de Estado, dos quais não
abria mão. «Sensível, nervoso, emotivo, permanecia contudo sempre sereno,
frio, sem cóleras, desapaixonado, sem pressas, sem excitação, em particular
quando em torno de si todos se mostravam incertos, perplexos, desorientados»,
escreverá, numa breve síntese de Salazar, o seu ministro dos Negócios
Estrangeiros, Franco Nogueira.
Quem com ele lidava, descrevia-o glacial no tratamento e condução dos
negócios públicos, cético ou indiferente com as elites, sem olhar a amizades ou
dependências.
Exemplo disso será Eduardo Coelho, seu médico pessoal desde o final da

Free download pdf