A última criada de Salazar

(Carla ScalaEjcveS) #1

história oficial de determinados acontecimentos daquele tempo, que, verdade
seja dita, nem sequer conhecia (a este respeito, a sua versão sobre a famosa
queda da cadeira, no Forte de Santo António do Estoril, talvez seja o melhor
exemplo).
Ela sabe o que viu e ouviu. O que não sabe não diz, nem faz que sabe. Nas
nossas conversas nunca chamou a si interpretações estranhas à sua experiência.
Nem o seu percurso de vida obedeceu a uma narrativa minada por preconceitos
ideológicos.
É verdade que Salazar apreciava ter «a pequena» Rosália por perto.
É verdade que Rosália gostou de Salazar.
Não o homem de Estado, não o ditador, não a figura histórica que, no tempo
e no modo, mais desafiou ódios e estimações. Mas sim o Salazar caseiro,
doméstico, privado, não exageradamente íntimo, mas quase sempre entre
quatro paredes, entre a cozinha e o parque, entre o escritório e o quarto, entre
São Bento e o Estoril. Um mundo muito próprio, austero, gerido em grande
parte por Maria de Jesus Caetano Freire, a eterna governanta, mulher que abriu
as portas da residência oficial da Calçada da Estrela a Rosália Araújo. «A
História está repleta de líderes políticos cuja vida privada não teve qualquer
correspondência com o seu estilo de governação», disse o jornalista e escritor
Joaquim Vieira, autor de duas obras de referência sobre a vida privada do
ditador.
As histórias reveladas por Rosália Araújo ajuízam essa interpretação.
No verão de 1970, Alberto Cosme do Amaral, antigo bispo auxiliar de
Coimbra, homenageou, numa sessão promovida pela Obra de Santa Zita,
empregadas domésticas que haviam cumprido mais de 25 anos de «casa».
Disse-lhes na ocasião: «A História nunca falará de vós. Não tereis o vosso
nome nas páginas da História (...) Que vos importa?! Fala de vós o Senhor que
conhece o vosso heroísmo, o Senhor que conhece a vossa cruz tosca, a vossa
cruz sem relevo, a vossa cruz sem adorno.»
Ora, este não é um livro de História nem de um historiador.
É um livro de um jornalista em busca das entrelinhas da História.
Por isso, este livro parte de Rosália Araújo e da sua história. Por isso, estas
páginas têm a sua voz antes, durante e depois de Salazar.
Mas este não é um livro sobre a última criada de Salazar.
É, na verdade, um livro sobre Salazar e a sua esfera mais doméstica, intimista
e familiar, nos últimos cinco anos da sua existência. Aqui não cabem as
análises e reflexões sobre a génese, a duração e a queda da ditadura, sobre o

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