A última criada de Salazar

(Carla ScalaEjcveS) #1

Familiares do antigo ministro Trigo de Negreiros esmeravam-se na escolha
das melhores alheiras de Mirandela para «o senhor doutor». Apreciador de
queijinhos frescos, Salazar também os provava não raras vezes, enviados de
Tomar, por devotado amigo. De Viseu, uma família remetia castanhas-de-ovos.
«Aparecia lá a dona Virgínia, com um cão enorme, que se atirava à gente. Ele
não gostava dessas cenas do cachorro, mas apreciava muito os doces», garante
Rosália.
Mesmo em Santa Comba, não faltou quem tivesse lutado afincadamente, em
tempos idos, contra as artimanhas de uma famosa «truta grande» para satisfazer
os prazeres da mesa de São Bento. A verdade é que, mesmo esquiva, a dita
truta acabaria na travessa almoçadeira do ditador. «Todos os dias chegavam
presentes», recorda Rosália. «Papaias, frutas variadas, pescada boa, fresquinha.
Nós nem a víamos, claro, era tudo para o senhor doutor. A dona Maria
contentava-se com a cabeça. Ela dizia que gostava de chupar as cabeças do
peixe.»
No Natal, também a mãe de Rosália se esmera. «Fazia um cestinho com pão
de Favaios, bolas de ovos e feijão-verde, que enviava à dona Maria pelo
comboio.» A governanta agradecia e devolvia o cesto carregado com roupas
que ela e Salazar já não usavam.
«Algumas das peças eram enviadas para o palacete pela Cáritas para que a
dona Maria desse a quem lhe apetecesse. O meu pai ainda chegou a romper
umas botas que eram do senhor doutor. E um capote à alentejana», recorda
Rosália.
A delicadeza era de monta, tratando-se de quem ensinara as criadas menos
experientes a remendar roupa e a virar os punhos das camisas. Maria mandava
pôr uma banda nova, fazer feitios e forros em jaquetões velhos. Arranjos de
calças, gabardinas e sobretudos também eram um fartote, a par de substituições
de colarinhos de camisas. Tinha fama de só dar as coisas depois de estragadas,
quando já não prestavam.
Em dezembro de 1964, Maria escutara o som característico do amolador no
exterior dos muros de São Bento e pedira ao agente Santos, da PIDE, que o
chamasse. Tinha uma travessa e um alguidar de barro escaqueirados e precisara
que o homem colocasse uns «gatos» nas peças, ou seja, uns agrafos de ferro
usados para juntar peças partidas.
O espanto do agente Santos não se fitou na travessa – até poderia ser de
estimação, pensou – mas sim no arranjo do alguidar, utensílio que, por essa
altura, custaria uns míseros 15 tostões numa mercearia ou drogaria.

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