A última criada de Salazar

(Carla ScalaEjcveS) #1

O médico era dos poucos com via livre de acesso ao Presidente do Conselho,
a quem dizia aquilo que outros não se atreviam. O ditador apreciava a
franqueza do coimbrão e a ele desvendava os mais íntimos pensamentos e
preocupações. Bissaya, antigo dirigente da União Nacional, era íntimo de
Salazar, confidente até, mas também maçom e amigo do opositor Henrique
Galvão, por quem batalhara pela sua libertação do forte de Peniche.
As visitas do cirurgião eram especialmente apreciadas pela criadagem.
«Conheci-o como as minhas mãos», suspira Rosália. «Era uma joia de pessoa,
conversava muito connosco. Nunca se esquecia da gente, sobretudo nas festas.
Quando ele se ia embora, lá vinha a dona Maria dizer-nos que ele tinha deixado
uma lembrança para nós. Uma vez recebi uma fazenda para fazer um casaco. E
houve um Natal em que ele deu um conjunto de roupa de cama a cada uma das
empregadas.»


À boca de Salazar chegavam os melhores produtos, as primeiras colheitas, os
primeiros peixes capturados pelo povo devoto ou encomendados pelas figuras
ilustres de cada região, atitudes com reminiscências típicas da vassalagem
medieval.
Do Minho, enviavam-lhe os primeiros peixes da temporada, salmões e
lampreias, embora, por vezes, se perdessem pelo caminho. O amigo Nogueira
da Silva, dono da Casa da Sorte, não falhava: o mais fresco salmão pescado no
rio Minho era despachado de Braga para o Porto e depois remetido para Lisboa
por avião. Era entregue no palacete em caixas de madeira com gelo e ervas
frescas.
Mas o comendador da cidade dos arcebispos não era parco em mimos. Eram
dele, também, as generosas ofertas de pão-de-ló de Margaride, que chegavam a
São Bento aos quilos. Generoso com Salazar, encaminhava também a vida de
Maria. Eram longas as conversas telefónicas entre ambos, por vezes à volta de
possíveis investimentos e negócios que Nogueira da Silva financiaria,
sobretudo em Moçambique, dando sociedade à governanta.
Do Alentejo, admiradoras de Salazar enviavam biscoitos, pinhões, ameixas e
trouxas. Um médico amigo, de Elvas, fazia gosto no envio de enchidos. De
Vila Real de Santo António, outro conhecido do Presidente do Conselho fazia
chegar as primeiras laranjas. Alfaces de todas as proveniências iam parar ao
palacete por obra e graça de outras fiéis amizades. A dona de uma pensão
lisboeta preparava terrinas de canja que mandava entregar na residência oficial.

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