A Garota Inglesa

(Carla ScalaEjcveS) #1

ele imaginou Veneza. Gabriel se perguntou quantos cadáveres jaziam abaixo
do gelo. Milhares, dezenas de milhares. Nenhuma outra cidade no mundo
escondia os horrores do passado com mais beleza do que São Petersburgo.
A única visão desagradável da prospekt ficava perto do final: o velho
prédio da Aeroflot, uma monstruosidade cinza inspirada no Palácio Ducal
de Veneza, com uma pitada da Florença dos Médicis para completar. Gabriel
entrou na rua Bolshaya Morskaya e a seguiu através do Arco do Triunfo,
chegando à Praça do Palácio. Ao chegarem perto da Coluna de Alexandre,
Lavon se aproximou para dizer que ele não estava sendo seguido. Gabriel
consultou o relógio, que parecia congelado em seu pulso. Eram duas horas e
vinte. Acontece no mesmo horário todos os dias, dissera Zhirov. Eles sempre
ficam meio loucos quando voltam para casa depois de muito tempo no frio.
Junto à Praça do Palácio, havia um pequeno parque, verde no verão
e agora branco como um osso por causa da neve. Lavon aguardou ali num
banco enquanto Gabriel caminhava sozinho até o Cais do Palácio. O rio
Neva estava congelado. Olhou para o relógio pela última vez. Em seguida,
ficou parado na barreira, tão inerte quanto o poderoso rio, e esperou por
uma garota desconhecida.
Ele a viu cinco minutos depois, atravessando a Ponte do Palácio. Ela
usava um casaco grosso e botas que quase alcançavam os joelhos. Um
chapéu de lã cobria-lhe os cabelos claros. Um lenço ocultava a parte inferior
do rosto. Mesmo assim, Gabriel soube instantaneamente que era ela. Os olhos
a traíam. Os olhos e o contorno dos malares. Era como se a moça com brincos
de pérola de Vermeer tivesse sido libertada da tela e agora caminhasse ao
longo da margem de um rio em São Petersburgo.
Ela passou como se Gabriel fosse invisível e seguiu para o Hermitage.
Antes de segui-la, ele verificou se a mulher estava sendo vigiada e, quando
entrou no museu, a garota já tinha sumido. Isso não importava, pois Gabriel
sabia para onde a desconhecida ia. Sempre o mesmo quadro, falara Zhirov.
Ninguém consegue entender por quê.
Ele comprou uma entrada e caminhou pelos corredores e galerias
intermináveis até a Sala 67: a Sala de Monet. E lá estava ela, sentada a sós,
admirando Lagoa em Montgeron. Quando Gabriel se sentou ao seu lado, a
mulher olhou de relance para ele antes de voltar a observar a pintura. O
disfarce dele era melhor do que o dela. Gabriel não significava nada para a
mulher. Nunca deveria ter significado.
Após mais um minuto, ele ainda não tinha se mexido; ela se virou e o

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