A Viúva Negra

(Carla ScalaEjcveS) #1

tinham imigrado para Israel no ano anterior, e outros iam embora a cada dia. Hannah,
porém, não tinha planos de se juntar a eles. Independentemente do que diziam seus
inimigos, ela se considerava francesa, em primeiro lugar, e judia, em segundo. A ideia de
viver em qualquer lugar que não fosse o quarto arrondissement de Paris lhe era
abominável. Mas ela se sentia obrigada a avisar seus companheiros judeus franceses
sobre a tempestade que se formava. O risco ainda não era de vida. Mas quando um
prédio está em chamas, escrevia então Hannah, o melhor procedimento é encontrar a
saída mais próxima.
Ela terminou o primeiro rascunho pouco antes da meia-noite. Era estridente demais,
pensou, e talvez um pouco raivoso demais. Suavizou as partes mais duras e adicionou
várias estatísticas deprimentes para sustentar seu argumento. Então, digitou-o em seu
laptop, imprimiu uma cópia e conseguiu ir para a cama às duas. O alarme a acordou às
sete. Ela bebeu uma caneca de café com leite a caminho do chuveiro. Depois, sentou-se à
penteadeira em seu roupão atoalhado e olhou seu rosto no espelho. Certa vez, seu pai,
em um momento de sinceridade brutal, disse sobre sua filha única que Deus fora
generoso ao dar-lhe inteligência, mas parcimonioso na beleza. O cabelo dela era
ondulado e escuro, riscado de fios brancos, cujo avanço ela permitia sem resistir. O
nariz era saliente e aquilino; os olhos, grandes e castanhos. Nunca fora um rosto
especialmente belo, mas ninguém jamais a tinha tomado por tola. Num momento como
este, pensou, sua aparência era uma vantagem.
Ela passou um pouco de maquiagem para esconder as olheiras e arrumou o cabelo
com mais cuidado que o normal. Depois, vestiu-se rapidamente — uma saia e um
pulôver de lã escura, meias escuras, um par de escarpins de salto baixo — e desceu as
escadas. Depois de cruzar o pátio interior, abriu alguns centímetros do portão principal
do prédio e deu uma olhada na rua. Eram alguns minutos depois das oito. Parisienses e
turistas caminhavam a passos rápidos pela calçada sob um cinzento céu de começo de
primavera. Aparentemente, não havia ninguém esperando que uma mulher de 50 e
poucos anos com cara de inteligente emergisse de seu prédio no número 24.
Foi o que ela fez, passando por uma fileira de lojas de roupas chiques até chegar à rue
des Rosiers. Nos primeiros passos, parecia uma rua comum em um bairro bastante
elegante de Paris. Então, Hannah passou por uma pizzaria kosher e várias barracas de
falafel com placas escritas em hebraico, e a verdadeira personalidade da rua se revelou.
Ela imaginou como devia ter sido na manhã do Jeudi Noir, daquela sexta-feira trágica.
Os presos, indefesos, subindo com dificuldade nos caminhões abertos, segurando sua
única mala permitida. Os vizinhos olhando das janelas; alguns em silêncio e
envergonhados, outros quase incapazes de conter sua alegria ante a desgraça de uma
minoria ultrajada. Hannah se apegou a essa imagem — a imagem de parisienses dando
adeus a judeus condenados — enquanto caminhava na luz chapada, os saltos batendo
ritmicamente nas pedras do pavimento.
O Centro Weinberg ficava na ponta tranquila da rua, em um prédio de quatro
andares que, antes da guerra, abrigara um jornal em iídiche e uma fábrica de casacos.

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