Público - 05.10.2019

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36 • Público • Sábado, 5 de Outubro de 2019


CULTURA


Opinião


Luís Raposo


Com a aproximação da efectiva
aplicação do novo enquadramento
jurídico da gestão dos museus,
palácios e monumentos nacionais,
dependentes do Ministério da
Cultura, começa a falar-se mais da
Ægura de director (ou directora) de
museu. Para alguns, ou algumas,
esse é mesmo o “nó górdio” de
tudo o que vier a acontecer. Maria
Vlachou, gestora e comunicadora
cultural, com mestrado em
Marketing de Museus, considerou
ser nas direcções dos museus que
está o mal que os condena ao
elitismo, dado que elas se dedicam
sobretudo “ao estudo e
preservação das colecções” e “não
apresentam uma visão de futuro,
não se vêem como fazendo parte
da infra-estrutura educativa e
cultural do país, não assumem um
verdadeiro compromisso com
toda a sociedade” (PÚBLICO, 21 de
Setembro de 2019). Noutras
ocasiões, acrescentou que as
tradicionais formações em
domínios que habilitem a saber
interrogar as colecções de cada
museu devem ser consideradas
acessórias, sendo principal a que
ela mesma protagoniza, a de
gestão cultural. Importa dizer
claramente dito que se trata de
uma total inversão de prioridades,
a que se opõem os representantes
dos proÆssionais de museus
portugueses, tanto o ICOM
Portugal como a APOM (esta ainda
mais vivamente).
Não admira, porém, que tal seja
defendido, quando também se
pretende que as colecções não são
assim tão centrais nos museus e
que nem se percebe por que devem
estes continuar a ser considerados
como “instituições permanentes”,
ademais “sem Æns lucrativos”:
teses em que um certo “activismo”
aparentemente progressista se
junta ao capitalismo efectivamente
predador. Não admira, em
primeiro lugar, pelo que Æcou dito
ao abrir este texto, somado com o
circunstancial favorecimento que


alguma intelligentzia das causas
identitárias logrou alcançar junto
dos gabinetes da Cultura, no Ænal
do ciclo governativo que agora se
conclui. Mas não admira sobretudo
pela profunda alteração
sociológica que a catástrofe do
hiato geracional está a causar no
mundo dos museus em Portugal.
Bem vistas as coisas, não são
apenas os directores (ou
directoras) dos museus que são
pouco inspiradores para quem
agora os invectiva: são os
proÆssionais dos museus em geral,
que olimpicamente continuam a
ignorar, e mostram até algum
desapreço pelas novas agendas,
que lhes querem impingir à força.
E, não podendo atacar todos,
atacam-se aqueles que mais
facilmente podem ser postos em
causa, sobretudo num contexto de
simpatia por parte do poder de
turno.
Pelo meu lado, não tenho
dúvidas em considerar que
assistimos nos anos, já décadas,
anteriores a uma muito nefasta
degradação do estatuto da
directora (ou director) de museu
nacional. Alguns (e algumas),
porventura muitos já, não possuem
hoje cursus honorum que lhes
permita serem respeitados e
tomarem a palavra publicamente,
com a independência de
pensamento que se lhes exigiria.
Sentem-se talvez compensados por
exercerem lugares de cheÆa, ainda
que recebam tão miseravelmente
que certamente não é por aí que se
justiÆcam os tormentos acrescidos
que aceitam sofrer. Faltam-lhes
sobretudo ciência e cidadania.
Vivem por isso fechados dentro de
silêncios que são ensurdecedores e
deixaram-se capturar pelos vícios
antigos do “respeitinho é muito
bonito” e do “manda quem pode,
obedece quem deve”. Em suma,
são pusilânimes.
Mas, dito isto, não se deve
concluir que a melhor forma de
garantir a qualiÆcação, técnica e
cívica, das futuras directoras (ou
directores) de museus nacionais
será passar a recrutá-las (ou -los)
entre gestores e marketeers (uso
aqui intencionalmente o termo
com dois “ee”), mesmo que
qualiÆcados de “culturais”. Os
saberes disciplinares da gestão e do
marketing são obviamente

transmitidos ao futuro. Claro que
podemos, e devemos, aproveitá-los
hedonisticamente no nosso tempo,
em nome dos nossos valores e para
nosso gáudio. Mas temos
sobretudo responsabilidade
perante a imensidão dos que não
têm voz, ou porque já morreram
ou porque ainda estão para vir.
Importa sublinhar que a maior
parte dos laços que prendem aos
museus quem neles trabalha não
são obtidos nos bancos das escolas,
mas construídos a pulso, na vida
realmente vivida. E admito por isso
que seja difícil explicar a quem
nunca neles trabalhou, ainda que
os ame ou simplesmente veja neles
um terreno de agitação social, tudo
o que vai na cabeça dos
proÆssionais dos mesmos,
daqueles que neles vivem do
amanhecer ao sol-pôr. Como lhes
dar conta da soma de afectos, ora
doces ora amargos, por que
passamos quando circulamos em
reservas, exposições ou
laboratórios de conservação e
restauro? Quando nos deliciamos a
conversar com crianças ou
adultos? Quando trazemos até nós
comunidades inteiras de uma
qualquer aldeia deste país? Ou
quando simplesmente
descortinamos a chispa da
descoberta, no olhar deslumbrado
de um qualquer visitante? Difícil ou
impossível mesmo. E esta é
também uma das consequências,
quiçá a mais gravosa em termos
sociológicos, do despovoamento
de pessoal que todos os sucessivos
governos têm irresponsavelmente
vindo a promover.

Podem os dados mudar para
melhor na gestão dos museus
nacionais? Admito que sim, se
houver realmente vontade política
para cumprir e ampliar o que
dispõe a recente legislação de
autonomia mitigada. Por um lado,
digniÆca ela, muitíssimo, a Ægura
do director (ou directora), que
passa a constituir órgão próprio de
gestão e não mera subordinação da
tutela imediata, passa a responder
por planos de gestão plurianuais,
negociados e com orçamentação
garantida, passa a poder contratar
(bens e serviços, incluindo
portanto pessoal)... Mas passa
também a somente poder exercer
três mandatos consecutivos (nove
anos no total) — o que vai
fatalmente ter consequências, que
tanto podem ser boas como más.
Se, como se encontra expresso
na legislação, for respeitado
rigorosamente o critério de
selecção tendo em conta
“competências técnicas especíÆcas
na área da museologia ou na área
patrimonial, adequadas ao
desempenho de funções na
unidade orgânica para que
concorre” e só depois, no plano
mais pessoal e curricular do que da
graduação académica, a “aptidão
para o exercício de funções de
direcção, coordenação e de
gestão”, então, poderemos talvez
assistir ao regresso aos nossos
museus nacionais de verdadeiras
mulheres (e homens) de cultura e
de ciência, com vida própria antes
e depois dos respectivos mandatos
directivos, sendo por isso muito
mais independentes e exigentes
perante todos os poderes.
Invertendo-se as prioridades, e
pondo à frente “aptidões” de
gestão, em detrimento da
capacidade interrogante sobre
colecções, então ir-se-á fatalmente
assistir à girândola de gente sem
rosto (ou com rosto meramente
temporão), que fará do posto de
direcção de museu carreira de
vida, saltitando de posto em posto,
independentemente da tipologia
dos acervos, procurando sempre
manter-se na crista da onda,
venerando quem possa
prodigalizar benesses. Veremos,
pois.

Uma nova geração de directoras


(e directores) de museus?


Assistimos a uma


muito nefasta


degradação do
estatuto do

director de museu


nacional. Alguns,


porventura muitos


já, não possuem
hoje cursus

honorum que lhes


permita serem


respeitados e
tomarem a palavra

publicamente


NELSON GARRIDO

Arqueólogo: presidente
do ICOM Europa

necessários aos museus,
desejavelmente também às suas
direcções, mas eles são
subsidiários do conhecimento
interpelante das colecções de cada
museu. Um museu não é um teatro
ou um centro de eventos,
destinado a ser entregue a
programadores ou curadores. Um
museu é acima de tudo um
contrato intergeracional entre
quem no passado produziu os bens
públicos, as colecções que neles se
guardam, e os sucessivos
presentes, até ao nosso, que
entenderam dever preservá-los,
tudo na intenção de serem
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