Eu e as Mulheres da Minha Vida

(Carla ScalaEjcveS) #1

litigiosos. Eles não, eles não discutiam e Graça achava que estavam muito bem assim.
Mas a conversa com Isabel deixou-a a cismar. Teria avaliado mal a situação ao dar por
adquirido que o seu casamento era indestrutível? Teria sido desleixada e cega, ao ponto de não
se aperceber de que ia a caminho de uma grande catástrofe.
— Zé?
— Hum?
— Ontem foste ao cinema com uma amiga? — Bolas! Graça orgulhava-se de ser uma mulher
racional, esclarecida, do género que não ia à igreja emprenhar pelas orelhas aquelas tangas
todas que os padres enfiavam às pessoas sobre milagres, anjos e poderes divinos que nos
condenavam no céu se não andássemos todos na linha cá na terra. Encarava os problemas de
uma forma sistemática, acreditava na causa-efeito, na dúvida metódica e na necessidade da
prova. Ser racional andava de mãos dadas com o bom senso, implicava abordar as questões
difíceis gradualmente, enfim, queria dizer que não se punha o carro à frente dos bois. E chegava
a casa, servia o jantar à família, deitava o filho, sentava-se no sofá ao lado do marido e atirava-
lhe com aquela, sem mais nem menos, enquanto estavam com os olhos postos na televisão? Boa,
Graça, isto é que é maturidade!
, autocensurou-se.
— Sim, querida — resmungou Zé, sem tirar os olhos da televisão —, fui com duas.
Zé ficou sem pinga de sangue, viu a vida toda a andar para trás, ponderou uma boa explicação
para o inexplicável, mas nem se atreveu a olhar para Graça, certo de que ela veria
imediatamente a mentira nos seus olhos comprometidos. Carregou no comando da televisão,
como se estivesse mais interessado em ver outro canal do que na pergunta absurda dela. Mas
também se mexeu no lugar e coçou nervosamente a cabeça e, se ela estivesse com mais atenção,
teria percebido que ele tinha umas gotinhas de suor nas fontes, sinais de incomodidade. Nestas
alturas, o corpo tinha tendência para trair a mente. Mas Graça não notou.
— Foi o que eu pensei. — E não disse mais nada. Poderia ter dito que «não, é que a Isabel
viu-te ontem no cinema com uma boazona e eu gostava de saber se andas a enganar-me ao fim de
dez anos de casamento», mas não teve nem coragem nem sangue-frio para tanto.
Zé respirou fundo e pensou que não tinha sido uma má saída, apesar de tudo, mas, agora que
ganhara tempo e se sentia mais seguro, raciocinou que não poderia deixar a coisa ficar por ali.
Afinal de contas, um homem não ouvia uma pergunta daquelas da sua própria mulher, sentado no
seu sofá, sem se indignar um bocadinho ou sem, ao menos, querer saber a que propósito vinha
aquele disparate, não era?
— Olha lá — disse, voltando-se para ela —, que disparate é esse?
— Nada, foi a Isabel que me disse uma coisa e eu fiquei a pensar — hesitou, por já não saber
muito bem como se explicar e tendo a perfeita noção de que estava a fazer figura de parva.
Puta da Isabel! , pensou Zé.
— O que é que a Isabel te disse? — perguntou. Na realidade, foi mais uma fuga para a frente.
Zé viu-se obrigado a perguntar, sentindo que, agora que começara, não podia voltar atrás com a
conversa.
— A Isabel disse-me que tinha ido ao cinema e que tinha visto alguém parecido contigo.
— Ah, ela viu alguém parecido comigo.

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