— Posso ir viver contigo?
— E deixavas a mãe sozinha?
— Não sei — encolheu os ombros. — Mas ela é que está chateada, não é?
— É, mas também está triste e precisa muito de que tu a apoies.
Quando chegaram a casa de Zé, Quico revelou-se encantado com a novidade que o
apartamento do pai representava para ele e quis meter o nariz em todos os cantos, investigar as
divisões e descobrir deslumbrado o seu quarto com secretária, computador e tudo.
— Altamente!
— É para quando cá vieres dormir — disse Zé. Por uma razão ou outra, Quico ainda não tinha
ido lá a casa. Ultimamente, Zé ia buscá-lo, levava-o a sair e devolvia-o à mãe. Isso teria de
mudar. Se continuassem separados, como tudo indicava, Zé tencionava estabelecer algumas
regras e uma delas seria o filho passar os fins-de-semana com ele. Mas essa era uma conversa
que ele tinha vindo a adiar, pois parecia-lhe que, de certo modo, seria como uma capitulação na
sua pretensão de recuperar o amor de Graça. Ainda não estava preparado para tanto.
— Podemos ligá-lo? — perguntou Quico, olhando para o computador.
— Hoje não, Quico — disse —, já são horas de dormir, senão amanhã não acordas a tempo
de ir para as aulas.
Zé trazia um sobretudo azul-escuro comprido por cima de uma camisa de flanela aos
quadrados e umas calças de ganga. Encostara um ombro à parede e enfiara as mãos nos bolsos
do sobretudo, descontraído, a desfrutar da presença do filho. Com a excitação da chegada, fora
atrás de Quico pela casa fora e nem tivera oportunidade de tirar o casaco. Mas agora, ao enfiar
as mãos nos bolsos, descobriu a folha de papel com a redacção que ele lhe fizera e tomou nota
de cabeça para não se esquecer de a ler logo que estivesse sozinho.
Acendeu a lareira, foi buscar um copo de água com gás e sentou-se confortavelmente num
cadeirão de couro a ler. A redacção era um testemunho sincero da infelicidade do filho perante
a separação dos pais e suficientemente triste para lhe fazer cair a alma aos pés. «Agora já não
tenho pai», escrevera Quico na sua letra insegura. «Quer dizer, ainda tenho, mas já não é a
mesma coisa, porque o pai não dorme em casa e só o vejo às vezes. Agora que ele tem outra
casa, se calhar também vai arranjar outra mulher e outros filhos e depois até pode ser que se
esqueça de mim como se esqueceu da mãe.
Para Zé, ler aquela carta foi o pior de tudo. A separação custara-lhe muito, mas magoar o
filho era algo infinitamente mais difícil. Foi tão doloroso que sentiu necessidade de telefonar a
Graça para lhe falar do assunto. Só que ela não atendeu.
Incapaz de dormir, Zé foi buscar um CD de David Bowie e pôs a tocar «Life on Mars?», uma
canção demasiado antiga para fazer parte da colecção de CD de qualquer adolescente, mas Zé
costumava ouvi-la e emocionava-se porque fazia parte da sua história e de Graça. Muitos anos
antes, quase vinte, ele punha-a a tocar para ela e escutavam-na fechados no seu quarto, em casa
dos pais dele, enquanto namoravam. Será que Graça ainda se lembra disto? , perguntou-se
quando as lágrimas começaram a cair-lhe pela cara abaixo. Que se lixassem os homens que não
choravam.
De manhã levou Quico ao colégio.
carla scalaejcves
(Carla ScalaEjcveS)
#1