O Último Ano em Luanda

(Carla ScalaEjcveS) #1

Cardoso pertence ao PIM — referia-se ao Comando da Polícia de Informação
Militar.


— Então — disse Nuno, fazendo o seu sorriso mais cínico — é assim que
vos chamam agora?


O outro fuzilou-o durante muito tempo com uns olhos penetrantes e fixos
de quem estava habituado a responder a provocações com uma bala na cabeça
e pouco faltou para dizer meninos como tu como eu ao pequeno - almoço. Mas,
em vez disso, limitou-se a dirigir-lhe um sorriso frio, o que ia dar ao mesmo.
Nuno encolheu os ombros.


— Podiam chamar-vos PIDE^3 reciclada — disse — mas suponho que não
seria politicamente correcto.


— Podiam chamar-nos a merda que quisessem — rosnou o agente Cardoso,
tão caloroso como um cubo de gelo — que continuávamos a ser os mesmo
gajos fodidos que sempre vos salvaram de serem enrabados pelos turras ,
desculpem o meu francês.


— Quando diz que vos salvaram refere-se exactamente a quem?
— Refiro-me a todos os que não distinguem um preto turra de um preto da
rua, o que, desconfio, é o seu caso.


— De facto, a mim parecem-me todos iguais, pretos e assim.
— A si e a toda a gente. Por isso é que nós ainda cá andamos. Porque
somos capazes de ver mais do que um palmo à frente do nariz e, embora
esteja na moda dizer que somos uns filhos-da-puta, somos os filhos-da-puta
que têm impedido os turras de vos ir ao cu quando muito bem lhes apetecer.
Lá estou eu a ser encantador.


— Realmente...
— Bom — interveio o senhor Dantas. — Se já acabaram de trocar as vossas
interessantes opiniões, podemos passar ao que nos traz hoje aqui?


Nuno abanou a cabeça ainda a sorrir e o agente Cardoso resmungou um
assentimento, refreando a vontade de o fazer engolir o sorriso a murro. Estava
um daqueles dias quentes de fazer derreter o asfalto. Havia à frente deles um
tapete metálico de caricas encrostadas no chão, resultado do negligente hábito
dos empregados de as atirarem para a rua quando abriam as garrafas que
serviam na esplanada. Ao lado deles, uma mulembeira, conhecida em Angola
como a árvore da sabedoria, estendia debaixo dos seus ramos preguiçosos
uma sombra centenária.

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