O Último Ano em Luanda

(Carla ScalaEjcveS) #1

A Luanda chegavam algumas destas colunas de refugiados e outros
milhares transportados em barcos desde Moçâmedes e Lobito. A cidade
estava um pandemónio, nada funcionava, ninguém trabalhava. As empresas,
condenadas, viam a sua actividade paralisar sem empregados, sem clientes.
Os seus donos faziam as malas e partiam, definitivamente. Os serviços
públicos não tinham funcionários. Os armazéns permaneciam cheios de
artigos tornados inúteis desde que deixaram de receber encomendas. As lojas,
mesmo as que teimavam em manter-se abertas, estavam às moscas, não
vendiam, faliam. Os cafés iam encerrando à medida que os seus proprietários
baixavam os braços e desistiam de lutar contra o seu destino fatal. O comércio
esvaía-se numa hemorragia económica e, pela primeira vez na História, um
país seria encerrado para se começar outro do zero. E Regina perguntava-se
por que diabo quereria alguém ficar a viver numa cidade donde todos fugiam
e onde, em breve, nem um copo de água se poderia beber, pois era garantido
que, entre as atrapalhações dos angolanos inexperientes que ficassem a operar
sozinhos a rede pública e as sabotagens da guerra, a água secaria nas
torneiras.


Manobrou o Mini Morris de maneira a fintar o trânsito, contornar a rotunda
e seguir em frente pela estrada que a levaria de volta ao centro de Luanda. Era
o carro de Laurinda. Ela passara-lhe a chave, os documentos. Toma, fica com
ele, dissera-lhe. Partia à pressa, com a roupa que tinha no corpo, à beira de um
esgotamento nervoso. Deixava tudo para trás. Os pretos que lhe ficassem com
a casa, a mobília, a porra do recheio todo, queria lá saber. Até lhes deixava o
frigorífico cheio, que sufocassem com a comida, que morressem enfartados,
era o que lhes desejava, cambada de selvagens, matavam-se uns aos outros às
portas de Luanda, mais dia menos dia, acabariam por invadir a cidade e
destruir o que ainda estivesse de pé. Uma tristeza, uma tristeza, mas enfim,
era erguer a cabeça e seguir em frente. Laurinda falava sem parar, agarrada a
Regina junto à porta de embarque, muito animada, com um sorriso
resplandecente que se via ser postiço. Ora ria ora chorava, com as emoções
num carrossel. As mãos tremiam-lhe, os dedos irrequietos arrepanhavam a
pele do braço da amiga sem darem por isso. Depois abraçava-a
impulsivamente, afastava-se, voltava a sorrir como que a dar coragem a
Regina, a ela própria, os seus olhos castanhos amendoados, muito doces,
enchiam-se de água. Ela limpava-os com as costas da mão, fungava, retomava
fôlego, recomeçava a falar, um pouco depressa demais, sem serenidade.
Chegaria a Lisboa, apresentar-se-ia ao serviço e ai dos cabrões que tentassem
fechar-lhe a porta na cara. Era funcionária pública, davam-lhe equivalência,

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