aviões da ponte aérea.
Antes do início da crise havia cerca de trezentos mil portugueses em
Angola, agora cento e trinta e dois mil tinham-se ido embora. Valeu-lhes um
tenente-coronel com uma determinação inquebrantável, investido nas funções
de secretário-geral do Alto-Comissariado — e em seguida esquecido pelo
Presidente da República, pelo governo de Lisboa, pelos partidos, todos
demasiado preocupados com eles próprios, ocupados a sobreviverem ao
furacão político que atravessava Portugal —, que se viu a chefiar sozinho as
pontes aérea e marítima, montadas para retirar em segurança todos os
portugueses e os seus haveres. Desse lá por onde desse, a tarefa teria de estar
concluída até nove de Novembro, penúltimo dia dos quinhentos anos da
soberania portuguesa em Angola.
Enquanto o dispositivo militar português se ia retirando das mais recônditas
localidades do infindável Interior angolano, os movimentos de libertação
envolviam-se em confrontos fratricidas pela ocupação dos territórios
abandonados. Os civis portugueses em fuga desses lugares deixavam para trás
cidades fantasmas, desoladas, com ruas desertas por onde o vento uivava,
levantando redemoinhos de poeira esvoaçante. Bairros inteiros, casas em
perfeita habitabilidade, lojas, cinemas, restaurantes, ficaram vazios da
presença humana, como se uma epidemia cataclísmica tivesse ceifado todas
as vidas, restando só os edifícios intactos. As culturas de algodão, de café, de
tabaco, eram abandonadas, o gado deixado à solta, a pastar tresmalhado pelos
campos sem ninguém para tomar conta. Para sua segurança, os civis
organizavam colunas de veículos, algumas delas com milhares de pessoas, e,
em muitos casos, famílias inteiras. Aventuravam-se em odisseias de centenas
de quilómetros, correndo riscos incríveis. Viajavam à sorte pelo sertão sem
lei, fintando os cadáveres à beira da estrada, passando ao largo de fazendas
em chamas. Cruzavam povoados sem vida, destruídos pela guerra, e
deparavam-se com postos de controlo levantados nos lugares mais
surpreendentes, no meio de coisa nenhuma, à mercê dos humores de
guerrilheiros maltrapilhos, armados e imprevisíveis. Procuravam alcançar os
portos das cidades litorais ou, em alternativa, a África do Sul através do
deserto de Moçâmedes ou por via marítima. Os camionistas levaram os seus
camiões para lá, os pescadores os seus barcos. Vinte e sete traineiras fizeram-
se ao mar com centenas de pessoas a bordo. Vinte e cinco chegaram a Walvis
Bay, no Sudoeste africano. Ninguém morreu.