O Último Ano em Luanda

(Carla ScalaEjcveS) #1

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A partida estava prevista para as primeiras horas da manhã, ao despontar do
Sol. Nuno deitara-se cedo a contar com algumas horas de sono extra, de modo
a ter a cabeça fresca e os olhos bem abertos no momento de se sentar aos
comados do Dornier. Mas o tacatacataca cadenciado dos duelos de
metralhadora entrava-lhe pela janela adentro como se o combate estivesse a
acontecer ali em baixo na rua, e Nuno rebolou-se na cama pela noite fora, sem
conseguir adormecer. A espera angustiante, combinada com o metralhar
ensurdecedor da guerra numa rua próxima, não permitiram que pregasse olho.
Acabou a madrugada sentado em tronco nu à janela, a fumar um cigarro e a
vislumbrar no céu longínquo, entre as silhuetas dos prédios, a noite escura
riscada pelas balas tracejantes.


Pensou em Regina, deitou-se a adivinhar o que estaria ela a fazer, por
aqueles dias, em Lisboa. Perguntou-se se já teria encontrado um apartamento
para viverem, se andaria à procura de emprego. Pela sua parte, Nuno já
decidira que iria comprar um avião logo que regressasse. Seria instrutor de
voo e alugaria o aparelho como táxi aéreo. Estava inclinado para um Cessna.
Ambicionava uma vida mais tranquila, dizia a si mesmo que já lhe chegava de
aventuras e queria compensar Regina e André por ter sido um marido e um
pai tão ausente nos últimos anos. Continuaria a voar, que era a sua paixão, e
acreditava que isso lhe bastaria para ser feliz. Doravante, não haveria mais
esquemas à margem da lei, não ganharia um centavo que não pudesse
justificar na declaração de impostos, pagaria impostos, coisa que nunca fizera
em Luanda. Teria uma rotina, chegaria cedo a casa e não dormiria fora
constantemente.


Era curioso, pensou, durante aqueles anos todos habituara-se a passar
semanas inteiras em trânsito pelo Interior do país, sempre de um lado para o
outro, batendo as capelinhas da guerra, visitando as bases do Leste, do Norte,
e não se lembrava de alguma vez ter sentido saudades da família como agora.
Naquela noite, porém, caiu-lhe a solidão em cima, talvez por serem eles quem
tinha partido e Nuno quem estava em casa. Ele contava sempre com a
presença de Regina e do filho em casa, quando chegava, de maneira que a
ausência deles o deixou um pouco desorientado. Faziam-lhe falta as
gargalhadas desbragadas de Regina, quando bem-disposta. De certo modo,
Nuno nunca considerara que as suas deambulações pelo sertão contassem
como ausências a sério. Quer dizer, ele de facto não se encontrava em casa

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