O Último Ano em Luanda

(Carla ScalaEjcveS) #1

troca um punhado de diamantes. Nuno estava-se a borrifar para a UNITA,
tanto quanto para os outros movimentos de libertação. Achava-os todos uma
desgraça e pensava que, muito em breve, o povo angolano estaria a chorar
pelo regresso dos portugueses, mas então seria tarde demais e ele não estaria
lá para se preocupar com o assunto.


Deitou fora a ponta do cigarro acabado, apoiou-se no parapeito da janela
por momentos e espreitou para baixo, atraído pelo miar assanhado de uma
luta de gatos, algures nas traseiras do prédio, mas descobriu apenas escuridão
profunda, como um poço a que não se via o fundo. Voltou para dentro, foi
tomar um duche frio, vestiu-se, saiu. Desceu as escadas, certificando-se de
que não se esquecera do salvo-conduto que o senhor Dantas lhe
providenciara, sabia-se lá como. Encontrou-o no bolso interior do blusão de
aviador. Aquele papelinho mágico era fundamental para ele passar pelos
postos de controlo do exército sem que lhe levantassem dificuldades. Antes
de se sentar no banco da moto, estranhou o surpreendente silêncio que tomava
conta de Luanda àquela hora. Não ouviu o crepitar das metralhadoras, nem as
explosões de granadas, nem o fuut-fuut-fuut surdo das pás dos helicópteros a
pairarem sobre a cidade em estado de emergência. Apenas um caridoso
silêncio madrugador. A guerra tinha parado momentaneamente. Nuno sorriu
espantado, e viu naquilo um bom sinal. Soltou o pedal de arranque, pisou-o,
apoiou todo o seu peso em cima dele e fê-lo rodar para baixo num esticão. O
motor rouco começou a trabalhar com duas explosões de gasolina que
abalaram a rua. Ao mesmo tempo, o telefone começou a tocar em casa,
trriim-trriim . Nuno não o ouviu, evidentemente. Recolheu o descanso lateral
com o pé, acomodou-se no banco, rodou um pouco o acelerador de punho
para aquecer o motor, tornando-o um pouco mais barulhento. Lá em cima,
trriim-trriim . Subiu o fecho de correr do blusão e cruzou sobre o peito um
cachecol leve de seda branca. Trriim-trriim. Engrenou a primeira com o pé,
soltou gradualmente a embraiagem de mão, ganhou velocidade, inverteu a
direcção, acelerou e subiu a rua em direcção ao aeroporto. Trriim-trriim...
trriim-trriim... trriim-trriim...

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