O Último Ano em Luanda

(Carla ScalaEjcveS) #1

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Apesar de todos os tormentos, da separação, de ter deixado Nuno para trás,
de se ver na contingência de recomeçar uma nova vida a partir do nada,
Regina não esmoreceu. Uma vez em Lisboa, instalada no seu antigo quarto de
menina, que a mãe mantivera absolutamente inalterado durante todos aqueles
anos, Regina descobriu em si um optimismo que ela própria não esperava,
uma força interior que em muito se deveu à surpreendente atitude do pai, que
a recebeu de braços abertos. Foi bom para os dois, porque, cada um à sua
maneira, ajudaram-se mutuamente. A maior virtude dele foi reconhecer
implicitamente o sentido de responsabilidade da filha, a capacidade dela para
tratar de si e do seu filho. Afinal de contas, Regina tinha construído a vida
dela em Angola e não se revelara a inútil apatetada em que ele tanto receara
que se transformasse. A circunstância de voltar para casa sem nada era outra
história. O pai compreendia, sem lugar a condenações, que Regina era apenas
vítima de uma vicissitude política, de uma armadilha histórica, que não só a
ultrapassava como afectava igualmente outros milhares de portugueses. Ela
era inocente da sua desgraça e o pai em momento algum caiu na tentação de
lhe dizer eu bem te avisei. Muito pelo contrário, o velho juiz reformado,
conservador e nostálgico da velha ordem, dos rígidos valores do anterior
regime que haviam norteado toda a sua vida, revoltava-se com os bandalhos
que mandavam no país desde o 25 de Abril, como ele se referia à novel classe
política e militar emanada da revolução do ano passado. Já a mãe de Regina
não se cansava de dar graças a Deus por a filha estar de novo em casa.


— O teu pai tem andado muito chocho — dizia. — Sabes, ele sente-se
perdido, não consegue perceber o que esta gente anda a fazer com o país.
Acha tudo uma loucura. Mas, olha, nem imaginas o que ele mudou desde que
vocês chegaram.


O juiz como que rejuvenescera, efectivamente. A companhia da filha, a
presença do neto que só agora conhecia, eram um bálsamo para a sua tristeza,
à qual, a dada altura, a família se tinha resignado, como se fosse um
irremediável sintoma da velhice. Mas não, o juiz ganhou um alento
extraordinário assim que eles chegaram. Abandonou o hábito recente de penar
dias a fio no exílio domiciliário a que se submetera voluntariamente,
arrastando-se pela casa do nascer ao pôr do Sol, ainda que sem descurar a
dignidade de um fato completo, de uma gravata escura de nó correctamente
apertado, de uns botões de punho dourados. Vestia-se de manhã com a
formalidade de sempre, como se fosse trabalhar, e no entanto havia meses que
não saía de casa nem para comprar o jornal. Pedia à mulher que lho trouxesse

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