questão de ficar a tomar conta de André. Levava-o a passear pela Avenida de
Roma, a comer um gelado ou, eventualmente, ao cinema. Tornaram-se
companheiros inseparáveis e, conforme o neto descobriu, o avô era um
excelente contador de histórias. De facto, o juiz tinha um acervo de memória
com décadas de histórias e podia passar horas a contá-las que André nunca se
cansava de se espantar. O juiz nunca se atirara a escrever as suas memórias
porque, sempre que ponderara a hipótese, acabara por concluir que era
trabalho a mais para ninguém ler. Quem é que quereria saber dos seus
pequenos casos de tribunal? Nunca fora uma vedeta da profissão, tudo e por
junto, julgara meia dúzia de casos remotamente famosos, que tinham chegado
às páginas dos jornais pelas suas características hediondas, de resto, nunca lhe
tocara nada de realmente notável. Construíra uma carreira sólida a resolver
disputas domésticas, arrufos de vizinhos e crimes triviais, e não se sentia nada
frustrado por ter sido assim, pois considerava que fora muito útil à
comunidade a julgar milhares de casos que afectavam directamente os
cidadãos, ao invés de outros casos, porventura mais gloriosos mas a que não
atribuía maior importância. Preocupava-se em fazer bem, a sua ambição era a
competência, bastava-lhe não falhar para dormir descansado. Conhecia juizes
que queriam a distinção dos tribunais superiores, mas ele não, ele satisfazia-se
com um trabalho bem feito. Jubilara-se com honra e tanto se lhe dava se não
tinha um livro memorável para escrever. Em contrapartida, não lhe faltavam
episódios pitorescos para contar ao neto atento e ouvinte insaciável de
histórias de polícias e ladrões.
À noite, Regina surpreendia o pai com a sua presença. Fazia-lhe
companhia. Encetavam discussões apaixonadas à volta do único assunto de
que se falava em Portugal naquela época: a situação política. Começavam a
falar ao jantar, a pretexto de comentar a última loucura do brigadeiro de
extrema-esquerda que governava o país com uma impetuosidade destravada.
A mãe, que não gostava, não percebia e não participava nestas conversas,
escapulia-se da sala de jantar com a desculpa de deitar André e ia ela própria
também para a cama, deixando os dois a digladiar argumentos acalorados.
Esses serões intermináveis aproximavam-nos um do outro, davam-lhes a
oportunidade de se redescobrirem. Para o pai, ela era uma agradável surpresa.
Pela primeira vez trocava opiniões com a filha e, ao contrário de antigamente,
ouvia-a com a consideração e o respeito de uma pessoa adulta. Divergiam
numa questão fundamental: ele era saudosista do velho regime e não
compreendia o que a revolução trouxera de positivo para o país, enquanto
Regina defendia a mudança e conseguia ver alguns méritos na democracia.