O Último Ano em Luanda

(Carla ScalaEjcveS) #1

instalavam-se, e, eventualmente, pagavam a renda. Mas se não pagassem
quem é que os iria pôr na rua?


O juiz adorou a ideia da filha e do neto permanecerem em sua casa. Regina
estava diferente, não saía todas as noites como antigamente. Preocupava-se
com o filho, tinha esmeros maternais, mas não era complacente com faltas de
educação nem se prestava a mimos exagerados, tal e qual como ela quando
era criança. Dava-se muito com a irmã, visitava-a amiúde e adorava as
sobrinhas. Em suma, preferia a companhia da família e tudo aquilo era
surpreendente para o juiz, que nunca sonhara vê-la assim, uma adulta
responsável e dedicada. Afinal de contas, Regina já era adulta quando partira
para Luanda e nessa altura o pai não lhe detectava qualquer sentido de
responsabilidade. Por outro lado, pensando agora, à distância, nessa época
conflituosa, o pai perguntava-se se não teria tido sua a culpa, se não teria
contribuído para exacerbar a natureza indómita da filha. E já não lhe custava
aceitar que, na sua aflição de a proteger de si própria, acabara por lhe retirar o
espaço de que ela necessitava para crescer como pessoa e, no fim, asfixiara-a
ao ponto de a empurrar para fora de casa.


— O erro foi meu — surpreendeu-a o pai, emergindo subitamente de um
estado de contemplação que o trouxera meditativo, acabrunhado, afundado na
sua poltrona de orelhas com o tecido de veludo roçado por anos de uso.
Estavam os dois na sala a ver o telejornal, quando ele despertou do torpor dos
seus pensamentos profundos e quebrou o silêncio com esta conclusão
definitiva: — O erro foi todo meu — repetiu.


Regina, sentada no sofá de três lugares, de tecido cor de tijolo igual à
poltrona do pai, ao lado deste, voltou-se para a sua direita, meio concentrada
na notícia de um cerco que uns quantos milhares de populares faziam às sedes
do PCP e do MDP/CDE em Leiria, desde há dois dias, com vagas de assaltos
do povo contra os militantes barricados e defendidos pelos soldados do
Regimento de Artilharia de Leiria.


— O que é que disse? — perguntou ela, distraída.
— Disse que o erro foi meu.
— Qual erro?
— O que te levou a afastares-te da família, a ires-te embora por tanto
tempo, foi culpa minha. — Regina olhou para o pai, espantada. Ele não se
voltou, falou com os olhos postos na televisão, mas, mesmo vendo-o só de
perfil, ela conseguiu perceber que os seus olhos assombrados por umas
sobrancelhas enormes estavam brilhantes, carregados de emoção.

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