O Último Ano em Luanda

(Carla ScalaEjcveS) #1

O partido do governo chegaria a Maio de 1977 irremediavelmente dividido
ao meio. Duas facções do MPLA entrariam em choque frontal por causa dos
despojos da colónia. De um lado, o Presidente da República e os seus
seguidores, que exerciam um poder despótico e eram apoiados pelos cubanos;
do outro lado, a facção mais radical, liderada por Nito Alves, histórico da luta
pela independência e organizador dos comités do Poder Popular que
venceram a batalha dos musseques durante o período de transição. Estes
acusavam aqueles de darem todas as benesses inerentes ao poder aos brancos
e aos mestiços. Os nitistas mantinham ligações estreitas à embaixada da
União Soviética, a qual os incentivou à revolta. Assim, a luta fratricida no
MPLA colocaria pela primeira vez dois sólidos aliados internacionais,
Moscovo e Havana, num absurdo confronto, porque ambos desejavam
estabelecer em Luanda um governo que obedecesse fielmente à manipulação
dos seus cordelinhos.


A 27 desse mês, os chamados fraccionistas tentaram a sua sorte com uma
revolta popular que, nas suas cabeças revolucionárias, a ser bem-sucedida,
legitimaria a passagem do governo para as suas mãos. Tomaram vários pontos
chave da capital, incluindo a prisão de S. Paulo, onde deram com o ministro
das Finanças que, sem mais, mataram, juntamente com outros nove altos
membros do governo e do exército. Mas os generais cubanos estragaram-lhes
o dia, porque, ao contrário do que pensavam os nitistas, não só protegeram o
governo como entraram em acção muito depressa. Apesar de terem sido
surpreendidos em Luanda sem armamento capaz para abafar a revolta, os
cubanos não se atrapalharam e ao meio-dia já tinham tomado a rádio nacional
e posto os golpistas em fuga para os musseques. Fizeram-no com uns quantos
tanques de instrução que, se tivessem de disparar um tiro, ter-se-iam visto na
embaraçosa situação de lhes faltarem as munições.


Frustrado o golpe de Estado, o presidente Neto ordenou uma matança de
proporções bíblicas. Uma comissão inquisidora — apelidada de Comissão das
Lágrimas pelas suas vítimas —, composta por altos membros do partido,
incluindo os dois escritores mais queridos do regime, enviou para a morte
milhares de pessoas. De norte a sul do país, a besta autofágica matou, matou,
matou, numa loucura sanguinária que só encontrou sossego dois anos mais
tarde. As principais vítimas foram os jovens do MPLA, estudantes,
intelectuais e militares, mas a morte foi ao encontro de toda a gente e, nesse
período sangrento, ninguém esteve a salvo da irracionalidade oficial. As
organizações de massas do partido, os sindicatos, as forças armadas e as
polícias, a administração pública e os ministérios, todos os sectores relevantes
da sociedade sofreram razias mortais. Milhares de inocentes, que nada tinham

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