O Último Ano em Luanda

(Carla ScalaEjcveS) #1

buracos tão grandes que era possível entrar em casa através deles. Já nas
paredes interiores o impacto das detonações das granadas fazia lembrar
crateras lunares. Havia rastos de sangue seco pelo chão, o que sugeria que os
mortos da refrega tivessem sido levados lá para fora depois da casa ter sido
tomada de assalto.


Regina percorreu todas as assoalhadas a pensar em Nuno, muito agitada,
cheia de medo de o encontrar morto num canto qualquer. Foi de quarto em
quarto numa busca febril, até dar com uma porta fechada no fim do corredor,
que não conseguiu abrir. Perdeu as estribeiras, lutou com o puxador, atirou-se
a ela, tentou arrombá-la com cargas de ombro, a pontapé, à beira da histeria.
Patrício acudiu para a ajudar, agarrou com firmeza o puxador, rodou-o, abriu
a porta e afinal era só uma dispensa sem história. Regina ficou ali especada, a
olhar para os baldes, as vassouras, os produtos de limpeza, como se não
compreendesse nada, como se o seu cérebro não fosse capaz de interpretar
mais informação, por muito banal que fosse. Chegara ao fim da linha, não
havia onde continuar a procurar. A esperança dissipou-se no espírito, a
adrenalina dissolveu-se no corpo.


Sentiu-se mal, uma quebra de tensão, recuou dois passos, trôpega,
encostou-se à parede e escondeu o rosto sem cor nas mãos suadas. Patrício
acreditou que ela ia desmaiar e amparou-a antes que resvalasse para o chão.
Fazia um calor sufocante e Regina viu-se com as unhas cravadas nos ombros
dele, a lutar para sorver o ar naquele ambiente encafuado, saturado de poeiras
irrespiráveis e de odores nocivos, a pólvora, a sangue, a morte. Não obstante,
ela estremecia com arrepios de frio. Patrício notou que também as suas mãos
tremiam, geladas, e não havia muito que pudesse fazer para as dominar.
Temos de sair daqui, disse, levando-a em seguida para as traseiras.


Atravessaram a cozinha, espaçosa como uma sala de estar. Era das poucas
divisões da casa que escapara intacta ao dilúvio de granadas e balas. Ainda
assim, alguém entretivera-se a partir o serviço de loiça todo, atirando ao chão
pratos, travessas, copos e chávenas. De modo que, para saírem pela porta que
dava para o exterior, tiveram de passar por cima daquela armadilha de vidros,
uma camada de cacos instável e escorregadia como uma pista de gelo.


Lá fora, descobriram uma piscina magnífica, em forma de feijão, mas
espantaram-se com o fantasma que boiava de braços abertos e cabeça voltada
para o fundo, à deriva numa água que começava a ficar esverdeada. Era o
cadáver de um homem pequeno, inchado como um balão de gás, envolto
numa túnica branca, larga e esvoaçante, no centro da água estagnada. O

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